Leverger é lugar de travestir-se

Texto: Maria Angélica Oliveira
Fotos: José Medeiros

Kellem Cristina está nervosa. Nunca imaginou que seria procurada para um ensaio fotográfico.

“Vida de travesti não tem glamour. A gente não acha que alguém vai querer conhecer… Ai, Nicoly, vira esse ventilador pra mim, minha maquiagem tá derretendo.”

A TV está ligada na novela, a maquiagem espalhada em cima do lençol de oncinha. Alguém derruba a latinha deixada no chão. Era a última cerveja gelada.

“Não tem problema. De boa.”

Kellem Cristina está nervosa com os cliques. Mas mostra serenidade ao contar episódios difíceis da vida sem tirar os olhos do espelho. Parece que superou. Melhor falar de carnaval.

“É muita emoção, principalmente com a bateria.”

São 17 carnavais desfilando em Santo Antônio de Leverger e Chapada dos Guimarães. O reconhecimento veio em 2015, com faixa e tudo.

Foi quando as musas da bateria do bloco não acharam justo serem coroadas já que não sabiam sambar. Kellem lembra direitinho do que ouviu: “Não é justo você, que samba tão bem, não estar no palco com a gente. Sobe para cá”.


Nicoly não é do samba, prefere o funk. Larga o ventilador e aproveita para retocar a maquiagem.

“Tomo hormônio desde os 16 anos. No começo achei estranho, mas agora já acostumei com aquela agulha todo mês na bunda. Meu sonho é operar, ser mulher.”

Estão prontas. Kellem coloca um pouco de maquiagem na bolsa, apaga as luzes e faz o sinal da cruz.

A família é evangélica. Ela já foi “em tudo”, mas prefere a missa do São Gonçalo do Porto. Pede para Nossa Senhora protegê-la do preconceito e violência.

“Seja o que Deus quiser.”

Nalbert surge na varanda maquiado, usando short e top. A fantasia é trabalhosa de vestir: por baixo, um suporte com armações em círculos para dar volume à saia, que vem por cima. Depois, blusa com mangas bufantes.

“Ai que lacradora”, alguém logo diz. Seguem-se mais lacrações: peruca, luvas e salto.

Até poucas horas atrás, ele nem imaginava que quebraria mais um tabu do carnaval em Santo Antônio de Leverger: a porta-bandeira gay.

Ritmista da bateria, Nalbert ficou sabendo durante a tarde, no ensaio do bloco, que a roupa não havia servido na passista. Criou coragem e candidatou-se ao posto.

“Costumo me montar no carnaval, mas nunca saí de porta-bandeira. Vai ser uma experiência, uma grande responsabilidade”, diz, reinando.

O bloco começa o esquenta. Os primeiros sons da bateria fazem composição com a rua ainda vazia e a luz amarelada dos postes. Carnaval é ocupação.

Kellem corre ao bar para pegar uma cerveja antes de o desfile começar. Encontra uma amiga das antigas, filha orgulhosa da cidade.

Carlita, 49 anos e 25 carnavais, fala pouco. Difícil imaginar o que é ser travesti numa cidadezinha em pleno Pantanal mato-grossense. Mas Santo Antônio de Leverger surpreende.

O bloco Seu Que Brilha nasceu ali mesmo, em 1974, em plena ditadura militar, por meio de um grupo de amigos.

“Eles gostavam de se vestir de mulher no carnaval, mas quem simpatizava, continuava”, brinca o presidente do bloco, Manoel Araújo.

Talvez tenha sido a cerveja – e Carlita acaba se soltando. Usa meia arrastão branca, luvas e tiara de princesa. “Gosto mesmo é de mostrar. Não gosto de esconder nada”.

Ao lado de Kellem e da porta-bandeira, as três formam uma comissão de frente orgulhosa.

“Seja o que Deus quiser.”

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