Jornada pela água

Texto e fotos: Ahmad Jarrah

A marcha estradeira conduziu Demétrios e sua família até as margens da rodovia BR-364, onde viveu acampado por quatro anos, com outras dezenas de famílias de trabalhadores rurais sem terra. Dentre tantas coisas, o acesso à água potável era a principal dificuldade. Durante meses tiveram que contar com doações de caminhão pipa para encher a caixa d’água improvisada no barracão de lona.

A inacessibilidade à agua prosseguiu mesmo com a implantação do assentamento rural, em 2005. Apesar de terem conquistado o direito à terra, ainda lhes faltava a água. Demétrios conta que a primeira fonte que encontrou foi uma pequena mina, de onde conseguia tirar, com muita paciência, apenas dez litros de água por dia. Após dois anos vivendo com o mínimo, construiu um poço, “furei no braço sete metros, sem manilha nem nada”.

Cansado dos esforços sem grandes resultados, Demétrios abriu uma represa, que facilitou o acesso à uma quantia maior de água, porém trouxe uma série de problemas de saúde. A água da represa sofria contaminação pelos animais o que a tornavam imprópria ao consumo humano. A água do poço era muito densa e salobra. Maria Glória, esposa de Demétrios, narra:

“tava com problema nos rins e o médico disse que era água, que era pra tomar só água mineral. Mas como que vou comprar água mineral aqui? E quando veio esse projeto de água da chuva, que comecei a tomar ela, nunca mais tive problema. O filtro de barro limpa tudo, aí tá pronto pra beber, fazer café, cozinhar…”. Agora, a água da represa atende apenas a lavoura. Plantavam maxixe e hoje cultivam pimenta de cheiro, que levam de carro para vender na cidade. A agricultura familiar sustentável é a principal fonte de renda das famílias.

Em 2012, o assentamento recebeu um projeto piloto de cisternas para coleta de água da chuva, inspirado por uma iniciativa bem sucedida desta tecnologia sustentável no nordeste brasileiro. Desde então, cinco famílias do assentamento Nossa Senhora Aparecida, em Várzea Grande, resolveram um problema que aflige mais de cem mil pessoas em Mato Grosso, quase um bilhão no mundo: a falta de acesso à água própria para o consumo humano.

Um pantaneiro sem água

O poconeano José Ito, pantaneiro acostumado com as águas abundantes de sua terra natal, também dividiu a mesma aflição que Demétrios, desde a chegada à beira da estrada até a conclusão do processo de reforma agrária que criou o assentamento. Ele e sua esposa, Maria, tiveram muita dificuldade para conseguir água, que demandava grande esforço.

Ito conta que caminhava quase um quilômetro com o carrinho de mão transportando o máximo de galões que conseguia de uma pequena fonte no meio da mata. Sua esposa, dona Maria, já estava cansada de transportar baldes de água na cabeça, de um lado a outro, quando surgiu este projeto das cisternas de coleta de água da chuva.

“Desde criança a gente bebia água da chuva no pantanal, nós fomo acostumado assim”, relata Ito, que já possuía um sistema rústico de coleta de água da chuva na sua casa, antes da chegada do projeto. Atualmente, além do consumo, a água abastece as plantações.

Você quer provar?

Me ofereceram a água como um desafio para testar sua qualidade e, após experimentar alguns copos e cafés, acredito que apenas paladares mais apurados saberiam diferenciá-la de uma água mineral qualquer. É cristalina, não possui cheiro nem sabor, o que se espera de uma água própria ao consumo humano, bem diferente do que chega às nossas casas na cidade. Como a cisterna é enterrada, a água está sempre fresca, e segue assim até sair do filtro de barro e abastecer a geladeira.

O sistema de coleta

O projeto de coleta de água da chuva por cisternas foi implantado pela primeira vez no nordeste brasileiro, e trazido para Mato Grosso pelo engenheiro do Incra, Samir Curi, sendo efetivado através de uma parceria com o Ministério Público. Além do assentamento, já foi levado a outras comunidades rurais, atendendo inclusive escolas e outros serviços públicos.

O sistema é simples. Inicialmente é feita a limpeza do telhado e descartada a primeira meia hora de chuva. Depois, a água passa a ser coletada a partir de calhas que a direcionam por um filtro para eliminar as grandes impurezas, antes de chegar à cisterna, que tem capacidade para oito mil litros e fica enterrada a um metro e meio de profundidade. Lá acontece a terceira etapa de limpeza, com adição de cloro. A última etapa, antes do consumo humano, é o filtro de barro, considerado o mais eficiente sistema do mundo. Toda a instalação custa cerca de cinco mil reais.

Para além da questão da água, a iniciativa faz parte de uma série de Tecnologias Sociais Sustentáveis, instrumentos que garantem a sustentabilidade sem degradar o meio ambiente, “a gente não quer só plantar. A gente não gradeia, não derruba árvores, a gente cuida da mata nativa, porque sem ela não tem chuva”, resume Demétrios.

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