Legado e lembranças do Rei do Baião

Texto e Fotos: Dewis Caldas

É impossível dizer quando foi a primeira vez que ouvi Luiz Gonzaga na vida. Na minha infância, no interior do Maranhão, o forró era tão comum quanto a luz do dia, tocando sempre no volume máximo numa casa do vizinho, ou nas ruas, nas festas populares ou elitistas, na tv, no rádio. E ouvir forró é sentir o peso da mão virtuosa do rei do baião, é como ouvir bossa nova e sentir a presença de Tom Jobim ou João Gilberto. Deve ser essa coisa do cognitivo, como diz o Tom Zé. Esses três, inclusive, nunca se acanharam para falar da influência que tiveram ao viver as músicas de Luiz. Mas o momento exato em que o universo “territorial” gonzagueano chegou a mim ocorreu aos treze anos, numa viagem de Chapadinha para Campina Grande, na Paraíba masculina, onde morei por um ano. Ao atravessar o Ceará, meu tio teve a ideia de descer mais pra baixo do mapa e passarmos por Exu, a primeira cidade depois da fronteira sul do Estado, já em terras pernambucanas.

Como esse desvio renderia muitas horas a mais ao trajeto, incluindo ainda aos constantes problemas técnicos que o carro apresentava, tornou impossível a passada na cidade onde Luiz nasceu. Fiquei com aquela grande vontade em mim, certo que um dia a viagem aconteceria. E matutei sobre isso durante toda a minha adolescência. Quase quinze anos depois, já em Cuiabá, no meu Mato Grosso, onde vivi por dez anos, me voltei novamente para toda a obra de Luiz Gonzaga, agora como pesquisador musical.

Antes, realizei – em 2011 – minha monografia sobre o lambadão, na contramão do que era “de bom gosto” vigente numa cidade que julga este gênero menor por ter sua origem nas periferias. Depois da experiência de invadir o universo lambadeiro com inúmeros textos, vídeos, coletâneas e muitas entrevistas sobre, eu estava convencido de que o meu caminho era a música tradicional. Tudo o que eu queria era ir em busca das formas musicais que saiam dos povoados, dos interiores da pequenas cidades, viver o mundo delas e escrever sobre este incrível momento onde a música explica uma comunidade, um povo, um país, uma nação. Os estudiosos chamam este aspecto de etnomusicologia. Durante as muitas pesquisas o audiovisual facilitou este objetivo, e passei a gravar vídeos para dar suporte ao que eu escrevia, principalmente depois de ter ido gravar caseiramente o Tonny Cajazeira no Maranhão, em 2010. Essa forma de fazer jornalismo me levou ao mundo dos documentários. E como num piscar de olhos, aquele velho desejo dos meus treze anos voltou fervorosamente e explodiu como uma bomba. Arquitetei a ida para Exu, na Serra do Araripe, na fronteira do Pernambuco com o Ceará e idealizei uma digressão cortando todo o Estado do Pernambuco, começando por Recife.

Inicialmente busquei um sentido mais amplo para a pesquisa, que se resumia ao tema “forró”, levando apenas os equipamentos e meu violão, tudo o que precisava. Mas por onde avançava o que eu redescobria, seja no forró, seja no baião, seja na música nordestina, seja o próprio Nordeste, eu chegava num ponto crucial que ligava tudo isso: era Luiz Gonzaga que aparecia gigante na minha frente. Foi aí que iniciei uma pesquisa minunciosa sobre a vida e obra do sanfoneiro. Li biografias, documentários, muitos vídeos e reportagens, escutei tudo o que ele gravou, de 1941 a 1989, ano de sua morte, e ainda os discos póstumos. Quando chegou o ano de 2012, época em que a lenda da sanfona completaria cem anos de nascimento, o país inteiro e boa parte do mundo se importou em homenageá-lo: o carnaval foi todo dedicado a ele, foi também tema de escola de samba de carnaval no Rio de Janeiro, as festas juninas foram todas dedicadas a ele, tinha filme na tv, pequenos documentários, muitas reportagens, discos em homenagem de diferentes artistas e projetos de todos os tipos lembrando o centenário do rei.

Ainda naquele ano eu trabalhei numa campanha política e decidi destinar boa parte do dinheiro que ganhei como assessor de imprensa para comprar uma boa câmera, um gravador legal e no restante do planejamento. Pensei: se o Brasil inteiro passou o ano fazendo tantas coisas para lembrar os cem anos de Gonzagão, imagine só o rebuliço que vai ser lá em Exu no dia 13 de dezembro, o dia do aniversário do Rei do baião. Na hora surgiu a primeira problemática: como fazer um documentário sobre alguém que já foi tema de tantos filmes, reportagens e biografias? Que temas eu poderia levantar no universo de um homem que passou 48 anos ativos no mercado musical brasileiro? Que narrativa eu poderia levantar para que o trabalho fosse relevante? Ufa! Matutei e percebi que se falava muito no Luiz Gonzaga histórico, da cronologia de sua vida, dos muitos acontecimentos emblemáticos, e cheguei na emblemática questão: Quem é Luiz Gonzaga hoje?

Quem é Luiz Gonzaga hoje se não aqueles que levam o seu legado, a sua obra, suas histórias e suas lembranças para os quatro cantos do mundo 23 anos depois de sua morte. E decidi ir atrás destes personagens e montei um perfil jornalístico do rei do baião composto por vendedores de camisetas, fã clubes, pessoas que vão anualmente para Pernambuco homenageá-lo, também pessoas da família, amigos de infância, a cozinheira, o vaqueiro, parceiros musicais de todas as épocas, tocadores e quem mais que tivesse participado da vida e contribuído na obra e na vida desde homem que mudou a música brasileira. Fiquei 27 dias no Estado do Pernambuco, passei por quatro cidades, realizei 49 entrevistas e perdi 7kg. Estas fotografias são um diário de bordo impessoal feito durante as gravações do documentário Óia eu aqui de novo – Na terra de Luiz Gonzaga no ano do centenário, em 2012, que conta os bastidores desta aventura fantástica na obra e no universo deste que é o brasileiro do século. Esta história ocorreu em 2012, e achei da maior importância compartilhá-la.

 

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