Devaneios delirantes

 

Texto e fotos: Ahmad Jarrah

Era um dia de chuva como há tempos não se via. Não sei bem a hora em que a avistei chegar, com um caminhar arrastado, levando seu corpo enrijecido pelo frio que lhe furtava os movimentos. A água que escorria pelo seu cabelo e encharcava suas roupas dava conta do tempo na rua. Parava em frente às pessoas que passavam apressadas de um lado a outro como vultos. Nem o vento lhe era tão implacável.

Eu conversava com um andarilho de estrada que nada carregava além de algumas miçangas, quando ela parou na nossa frente. Talvez tenhamos sido os únicos que a enxergaram em seu iminente drama. Não conseguia falar, mas sua expressão exalava fome. Arranjei algo do que comeu como se não o fizesse há dias. O andarilho sacou uma roupa seca e lhe ofereceu. Aquele cara, que nada tinha, conseguia ajudá-la a se proteger do frio, mas também era impotente à frieza das pessoas.

Ela partiu e não mais a vi. Quatro meses se passaram até que a encontrei em outra praça, também ao acaso, com a mesma roupa. Em ambas as ocasiões ela pouco verbalizou oralmente, as suas expressões foram corporais. Mesmo com toda vulnerabilidade social que a situação de rua lhe impõe sobre sua carne, a invisibilidade degrada a tão fraturada alma. Houve uma diferença de contexto entre as duas praças em que a vi, e a isso se deve uma mudança de comportamento em relação ao primeiro encontro.

A Praça da Mandioca, tradicional região no centro histórico de Cuiabá, recebeu diversas apresentações artísticas em um evento do Cidadão Cultura. E lá estava ela, dançando radiante em frente ao palco.

O contexto cultural a colocou como protagonista em uma zona autônoma temporária, que a permitia extravasar a pulsão de vida que emanava da alma e levou seu corpo a expressar as referenciais culturais que lhe corriam nas veias, apesar de estarem adormecidas.

Mais que antropológica ou sociológica, antes de se tornar ciência, a cultura é humana. Aquela conjuntura lhe tirou o véu da invisibilidade, a colocou em nível de equilíbrio e afinidade com todos os presentes, não provocou a repulsa a que já estava habituada. Pelo contrário, várias se puseram a dançar com ela, inclusive eu. Era mais uma entre tantas desfrutando a fruição artística, um lapso em que a democracia verdadeiramente funcionara e ela alcançava, mesmo que provisoriamente, o status de cidadã.

A cultura, que tantos malfadados muros já construiu e implodiu, dessa vez tornava em ruínas os que a separavam da sociedade e, naquele instante, o sentimento de partilha e cooperação não deixaria esvaziar seu copo, não lhe faltariam pares para a dança, ombros para lágrimas. O sonho de que o instante se estendesse, que a música jamais parasse de tocar para que ela pudesse continuar a girar e girar, sem nada mais à atormentar. Devaneios de uma mente delirante.

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