Divinos e divinas de Barão de Melgaço

Texto: Arthur Santos
Fotos: Rodolfo Luiz

É como uma sagração. Dezenas de mulheres e homens freneticamente empenhados em matar, cozinhar e comer. Barriga cheia, hora de beber e dançar. Tudo num ritmo, como se fosse uma flecha. Seta direcionado a terceira parte da Trindade católica. É a festa do Divino Espírito Santo, em Barão de Melgaço, a pouco mais de 100 quilômetros de Cuiabá.

As cores são o vermelho e o branco. O festejo, ação de tradição indiscutível nascida desde Portugal, parece ter se desdobrado no tempo. A divindade, certamente envergonhada da própria vaidade, repensou seu caráter onisciente. O espírito que existe se esfrega entre os corpos que trabalhão pelo acontecimento.

Sobre a História, o povoamento da região onde hoje se localiza Barão de Melgaço está ligado ao processo de espacialização ocorrido no entorno das minas de Cuiabá, a partir da tomada de ouro no rio Coxipó. Na segunda metade do século XIX, com o fim da Guerra do Paraguai, tem início a navegação a vapor. O princípio da urbanização ocorre com a doação das terras do que seria a Freguesia do Melgaço, em 1897, por Antonio Paes de Barros a Nossa Senhora Das Dores. Uma localidade desde o início santificada e devedora ao que é sagrado.

Um exame sobre passado esclarece que a doação das terras visava concentrar uma população majoritariamente negra que seria utilizada como mão-de- obra disponível para as usinas de açúcar, como braços armados dos coronéis e como eleitores sob a influência da família Paes de Barros. No entanto, a década de 1950 vivenciaria a decadência da navegação a vapor e, por conseguinte, das usinas de açúcar. Assim a pecuária ascendeu como principal atividade econômica da região pantaneira norte.

Saltando no tempo feito um espírito onipresente, sobre as atuais seis ruas da cidade, cheias de casas humildes pensadas simetricamente em paralelo ao Rio Cuiabá, os moradores passeiam ou aguardam com calma. Esperam pelos barulhos de fogos. São os estouros do Divino que avisam sobre os momentos de comer e festejar. O visitante ignorante pode não notar a centena de anos que passou desde que os barcos e suas rodas d’água iam e vinham, rio acima, rio abaixo.

O estrondo pela manhã é sinal do café: bolo, chá, sarapatel e francisquito. Tudo forrado de vermelho e branco. Velhos e crianças caminham um vai e vem entre casas e ponto festivo. Fogos ao meio-dia: panelas de fundos quase infinitos com arroz, feijão, macarrão e carnes.

Além da presença física traduzida em banquetes, o Divino Espírito Santo ou simplesmente “Divino” é a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Por vezes funciona como Deus. É o amor entre o Pai e o Filho personificado, vivo e atuante. Para quem tem fé católica, é ele quem passa a habitar o coração pelo batismo e quem guia os que creem em Jesus Cristo no caminho da salvação. A Bíblia usa imagens simbólicas para representá-lo: Fogo, Sopro, Vento, Água Viva e o símbolo da pomba.

Justamente pelo passado católico, religião com seu início preconceituosamente fálico, a festa do Divino ordinariamente é imaginada como produto de uma força masculina. Basta, porém, se aproximar dos preparativos para observar a importância da mulher e do feminino. São elas as responsáveis por organizar e executar todo o festejo. Senhoras negras que trabalham empenhadas na fé. Talvez aí esteja a verdadeira grandiosidade da ocasião.

 

Esta grandiosidade é ainda mais aparente quando observada a opulência da festa. Homens e mulheres exercem o dom da morte como verdadeiras divindades. A fartura de uma dezena de bois mortos e centenas de galinhas em tambores com água aguardando pelo tempero. O domínio sobre o fim de alguns animais e a abundância de comida e bebida parecem descrever uma potência dionisíaca das mais aconchegantes. Espécie de cerimônia de sacrifício aos verdadeiros seres sublimes.

Passada a marcação de tempo pelos fogos matutinos e vespertinos, chaga à noite toda vontade de cortejar. Saem os devotos para buscar a pomba branca. Uma procissão que carrega velas, rezas e cantorias e acaba no levantar do mastro fitado. Algo que precede mais orações, comida, bebida e rasqueado para ser dançado. Mais fogos são detonados aos céus. Ao final, sujeitos estão entregues a folia santa.

“Vinde Espírito Santo enchei os corações de vossos fiéis e ascendei neles o fogo do Vosso amor; enviai Senhor o Vosso Espírito e tudo será criado e renovareis a face da terra. Oremos: Ó Deus, que instruístes os corações de Vossos fiéis com a Luz do Espírito Santo, fazei que apreciemos retamente todas as coisas segundo o mesmo Espírito e gozemos sempre de sua consolação. Isso Vos pedimos ó Pai em Nome de Jesus Cristo Vosso Filho nosso Senhor na unidade do Espírito Santo. Amém”, oram.

Maria Euzélia, Maria José do Nascimento, Antônio Euzébio da Silva, Ana Fermina de Amorim Brandão, Constança Vital de Arruda, Isaura Alencar de Arruda, Teocles Antunes Maciel, Antônio Euzébio da Silva, Sebastiana Nunes de Oliveira, Euclides de Sousa Brandão, Maria José do Nascimento. Moradores de uma cidade que retrai os olhos para espantar a pobreza, Divinas e Divinos terminam satisfeitos com o banquete. Ano próximo a cerimônia se repetirá.

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