Retratos da longevidade

Texto e foto: Ahmad Jarrah

Por mais que se corra nessa vida, há uma companhia mais implacável que nossa sombra, algo que se espera prorrogar ao máximo, mas nos alcança mesmo que não se queira. O tempo que avança apresenta suas marcas na pele, na mente, e muitas vezes na alma. Enquanto cientistas investigam maneiras de tornar a humanidade cada vez mais longeva, as famílias, o estado e a sociedade ainda não criaram condições para a digna existência de nossos anciões no presente e de nós mesmos e nossos filhos em um futuro próximo.

O Brasil vêm aumentado sua população com mais de 60 anos, o que vem sendo usado inclusive como justificativa para o corte de uma série de conquistas sociais que afetam diretamente a população idosa, como a Reforma da Previdência. Porém, o que se vê nas ruas é uma população mais velha trabalhando duro em tarefas braçais informais para complementar uma renda que hoje passa longe de ser suficiente para a manutenção de suas famílias.

Outra situação recorrente aos idosos é o abandono por parte da família, o leva vários deles à intensificação de problemas psíquicos acarretando em abandono nas ruas, muitas vezes atrelado ao uso de drogas e álcool, ou o acolhimento em abrigos mantidos por organizações filantrópicas. Uma série de artigos científicos apontam que a sociedade, o poder público e as famílias são igualmente responsáveis pelo amparo à população idosa, apesar disso ser visto muito mais como um problema da esfera privada, e não pública.

Essa reportagem é a primeira parte de uma série que pretende investigar as condições de vida e existência da população idosa na baixada cuiabana. Nesta etapa, visitamos o Lar de Idosos São Vicente de Paulo, gerenciado por uma organização filantrópica, consegue realizar um importante trabalho de acolhimento e cuidado em Várzea Grande.

A vida no abrigo

Para investigar como é a vida nos abrigos e lares para idosos, buscamos uma instituição que tem como foco o atendimento às pessoas abandonadas pela família ou vítimas de violência, maus tratos, abandonos ou decisões judiciais, e dentro do perfil encontramos o Lar São Vicente de Paulo, em Várzea Grande, que atende especificamente esse público, e abriga atualmente pouco mais de 60 idosos.

À primeira vista, instalações simples e um amplo espaço de vínculos e conexões. Estavam quase todos sentados, não era um dia de visitas, nem tinha qualquer evento programado, chegamos como de supetão para ter as percepções de um dia qualquer lá. Uma trilha de concreto pelo jardim guiava até uma área coberta onde duas dezenas de idosos assistiam televisão, conversavam ou estavam absorvidos em misteriosos pensamentos que lhe tomavam toda a atenção.

O Lar conta com visita periódica de voluntários que fazem todo tipo de serviço, desde atendimento de saúde, estético, cultural, até mesmo uma mera conversa, romper o lento cotidiano da casa é sempre um motivo de alegria para seus residentes. Não seria diferente conosco, caso não os tivéssemos pego de surpresa. Pelo caminho, uma senhora sentada em um banco me observava, de soslaio, caminhando com a câmera. Depois de tantos momentos da comunicação, atualmente os repórteres nem sempre são vistos com bons olhos. O denuncismo e o assassínio de reputações que permeiam as primeiras páginas dos jornais deixam as pessoas sempre em situação de defesa.

Em qualquer um dos diversos eventos realizados no Lar, vemos a alegria estampada em um sorriso formando uma brecha por entre as rugas, donde já não avistamos mais os dentes perdidos pelo percurso. Mas esses são eventos atípicos, e me inspira mais conhecer os pensamentos mais absortos, a introspecção, as marcas da memória e do esquecimento, dividir as dores para posteriormente compartilhar alegrias.

Definitivamente, a vida das pessoas idosas no Brasil não é fácil. Muitos moradores do Lar sofrem de problemas de saúde, e precisam de cuidado cotidiano e ajuda para realizar algumas atividades. A ausência da família é parcialmente suprida com a dedicação e zelo dos colaboradores do Lar, que se transformam, juntamente com os visitantes, em uma nova família que supre a afetividade abandonada pelos consanguíneos.

Enquanto sou absorvido pela profundidade dos olhares dos moradores, ouço as histórias narradas à jornalista que me acompanha. As faltas e ausências, a necessidade de estar em contato com as pessoas, a ingenuidade de quem cuidou de vários filhos e netos e depois foi largado à própria sorte, não há como não se emocionar.

Abandono e maus-tratos como motivadores

Sem associar os depoimentos às pessoas que os narraram, foram muitas as situações de abandono e maus-tratos que os levaram até o Lar. Um dos moradores conta que foi atrás do Lar “depois que meus filhos não quiseram ficar comigo. Ao todo, tive nove, mas nenhum me impediu de vir, pelo contrário. Não recebo visita há três anos. A minha filha, com quem morei por último, roubava meu dinheiro e dizia que eu era louco”. Com a ajuda de um amigo, encontrou o abrigo “Nenhum dos meus filhos teve coração. Nenhum deles disse para eu não ir embora. Então eu não me arrependi de ter vindo para cá”

O abandono foi substituído pelo amor compartilhado dentro do Lar, que percebi na imagem de uma senhora, antiga residente da casa, que cuidava de uma boneca como se estivesse carregando sua própria neta. São muitas marcas deixadas por boas e más lembranças, por convenientes esquecimentos e outros arbitrários. O avançar da idade caminha por um corredor longo e escuro, porém iluminado ao fundo. Essa luz depende de que não retrocedamos nos direitos das pessoas idosas, mas pelo contrário, que avancemos em novas conquistas sociais, políticas e, sobretudo, humanas.

Faça uma visita ao Lar São Vicente de Paulo ou qualquer outro abrigo de idosos. Lembre-se que eles sobrevivem de doações, sempre estão precisando de algo, seja alimentos, produtos de higiene pessoal e, não menos importante, afeto e carinho.

Com Circuito Mato Grosso

Inscreva-se
Receba as últimas atualizações em seu email