A resistência pantaneira

Texto e fotos: Ahmad Jarrah

O sol nasce e se põe todos os dias, e ele sempre consegue ver a beleza da vida. A simplicidade e humildade do lugar resplandecem em sua forte personalidade. A resistência e incansável disposição surpreendem qualquer um que o conheça. Edmilson Barreto, o Mil, trabalha em uma chácara no município de Glória d’Oeste, em Mato Grosso.

Com 42 anos de idade, sua força e vigor físico o fazem parecer dez anos mais jovem. Na chácara, estava à beira de um tanque limpando alguns peixes que havia pescado. O pai, seo José Francisco, contava orgulhoso das habilidades do filho na lida diária, “ele consegue fazer de tudo”. Ao expressar quais as atividades que mais lhe dão prazer no campo, Mil é incisivo: pescar e cavalgar.

A alma pantaneira ganha contornos em suas roupas, chapéu, na hábil montaria. Ele levanta antes do primeiro raio de sol riscar o céu, para tocar o gado e dar ração aos peixes.

A vida de Mil poderia se confundir com a de milhares de trabalhadores rurais brasileiros, não fosse um detalhe que emociona a todos que conhecem a sua história de superação “depois da copa de 94, eu tava fazendo uma cerca. O trator enroscou na minha calça e puxou minha perna”.


Ele tem dificuldades para se comunicar verbalmente, sua audição também é limitada e às vezes parece estar mergulhado em um mundo particular.

Possui um temperamento peculiar e um ar bravio em sua maneira de fazer as coisas. Carrega um brilho virtuoso no olhar, a infinita profundidade do horizonte.

Depois que perdeu a perna direita, Mil tentou usar uma prótese, mas não conseguiu se adaptar. O formato rígido e pouco anatômico o machucava, desde então, só se locomove pulando, sem qualquer tipo de auxílio.

Os amigos dizem que a determinação de Mil já vem de longa data, que montava em boi “brabo” e tinha um misto de valentia e ingenuidade:

“teve uma vez que pescávamos no rio Jauru, a rede enroscou e não soltava. Quando assustamos, Mil tinha mergulhado na água. Passou mais de um minuto, todo mundo ficou preocupado, achamos que tinha acontecido alguma coisa. Até que, de repente, volta ele abraçado com a rede e mais dois pintadão. Gritamos pra ele largar os peixes por causa do ferrão, mas ele disse que se soltasse, os peixes iam escapar”.

O prazer da vida sertaneja se manifesta quando ele monta seu cavalo e se embrenha em meio ao gado. Está atrás de um boi ferido para vaciná-lo. Já estou exausto quando ele retorna em seus pequenos saltos. Vai abater um leitão que será servido em um grande almoço.


Faz questão de empunhar a faca para ensinar como se abate, prepara o tacho e faz toda a limpeza. Só recebe ajuda para segurar e transportar o leitão. Tão logo me distraio, lá estava Mil saltando de um lado a outro, ora com um saco de vinte quilos de ração no ombro, com as galinhas, ajudando na cozinha.

 

Eis que a noite enlaça o dia e Mil abre espaço para umas cervejas, durante as tarefas. Já habituado com sua forma de locomoção, essa escolha de não utilizar prótese passou a me incomodar. Refletia a possibilidade de acarretar alguma consequência com o tempo. Tentei convencê-lo a considerar o uso de próteses mais anatômicas. Ele é reticente. Segue fazendo as coisas dele à sua maneira, vivendo um dia de cada vez.

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