Texto: Bruna Obadowski
Fotos: Bruna Obadowski e Henrique Santian
Era manhã, quando a pequena Francisca notou a chegada da comadre de sua mãe, dona Constantina, em sua casa. Ela ouvia por entre a porta a comadre receber a autorização para levá-la ao “centro”, de modo a fazer-lhe companhia. Ao ser aprontada por sua mãe naquele início de tarde, a questionou “mãe, por que a senhora me deu pra comadre? ”. Para a retórica pergunta, a resposta foi o silêncio. Andaram por duas léguas, até chegar a uma casa simples, mas que recebia muita gente. Permaneceu sentada no quarto durante a tarde toda, quando, já perto de ir embora, a “bacura” foi chamada pelo caboclo para a “gira” e viu imediatamente aquele altar, cheio de luz e cores. “Eu não falava nada, mas sabia tim tim por tim tim o que estava acontecendo”. “Riscou”, sem saber riscar, girou sem saber girar e foi ali, ainda criança, que entendeu seu dom.
Francisca Correa da Costa, conhecida carinhosamente como “vó Chica”, ao longo de seus 103 anos, sempre se dispôs a cuidar das pessoas, senão com um passe, o partejar estava presente desde seus 10 anos de idade, recebendo em seus braços muitos bebês. Segundo ela, ter saúde para cuidar de si é o que a faz também cuidar dos outros com amor e carinho. Chica, dona de uma sensibilidade sem igual, narra com sua fala tranquila e consciente, histórias e simpatias a perder a noção do tempo calmo de Chapada dos Guimarães a passar..
Um vez por semana, dona Francisca, antes do sol nascer, passa seu café e oferece junto com um cigarro e uma xícara de pinga, ao santo. Hoje, trata-se de um rito natural, ao qual já está habituada ao longo dos anos. Sua religiosidade, desde a revelação quando criança, é presentificada em imagens, flores, velas, água de cheiro, e, principalmente em forma de benzeção, que se faz presente numa casa de cores diversas e de fluxo constante.
Sua casa é nitidamente a expressão de sua intimidade religiosa. As cores vibrantes nas paredes, a deixam com um tom alegre e receptivo. Não há qualquer ambiente que falte devoção. São quadros, fotografias, rezas e muitas imagens.
Não é preciso ir além da área de sua casa para conhecer o altar, onde Francisca certamente passa boa parte de seu dia benzendo. “Antes, ele ficava no quarto” conta a neta referindo-se ao altar de quase 15 anos, cujo espaço dedicado hoje, fica logo na entrada de sua casa, numa reverência à livre passagem para atender a quem precisar de seus cuidados.
Cantando e rezando, procura a imagem de Santo Antônio para nos mostrar o primeiro santo daquele espaço que seria aberto, a quem precisasse de uma oração. Antes de começar a benzer, ela logo trata de dar longas voltas em sua corda desatadora de nós. A corda é mais um dos vários presentes que compõe seu espaço, fruto de lembranças de pessoas que passaram por ali.
Solícita, sempre que procurada, Vó Chica não determina qualquer tipo de contrapartida pela sua benção, tampouco pelas garrafadas e banho. Apesar disso, há uma organização impressionante construída de forma natural e espontânea na hora de receber os visitantes. Tirando dia de velório e quaresma, não há regras, tampouco objeções para ela benzer. Em relação às pessoas, é notório que o visitante seja sensível e nada ríspido e direto. Nunca é pelo dinheiro. Existem muitos visitantes que contribuem com mantimentos ou agrados, de forma a ajudá-la.
Café é um dos vícios que deixou há muito tempo, porém em sua cozinha nunca falta. Na garrafa térmica, ela deixa pronto forte e doce para oferecer a quem sentir desejo. No fogão, ela se faz presente sempre no almoço, cozinhando e proseando sentada com os pé no chão, com quem estiver a vista-la.
Passeia pela casa em passos calmos com movimentos suaves a arrastar seu chinelo no chão, pronunciando sua chegada a quem estiver à espera, às vezes mães com crianças, adolescentes, idosos, não há classe social, religião, tampouco idade, e é assim o dia todo.
Não precisa de motivos para arrumar-se. Sua vaidade é graciosa, com anéis de Nossa Senhora e brincos na cor branca.
Francisca, passa boa parte do tempo em casa, sai algumas vezes para ir à igreja. O cemitério, lugar que dedicava algum tempo para acender velas, já não frequenta mais, desde que perdeu alguns netos, filho e marido. A morte, é um evento tratado com singularidade por ela. Há de se respeitar este momento, pois segundo ela, não há intervenção que se possa fazer. Trata quando há cura, mas a morte não é doença e sim, uma passagem. Sua consciência espiritual é admirável. Com toda sua delicadeza, parece entender a fluidez do corpo, suas fraquezas e sua cura. O que Francisca busca, é muito maior do que imaginou, é o seu destino.