Texto e fotos: Ahmad Jarrah
Da primeira vez em que a notícia de uma reformulação urbanística no bairro do Porto ocupava as mídias, durante os preparativos para a Copa do Mundo em Cuiabá, os moradores do tradicional bairro, berço da cidade, se alvoroçaram com as melhorias que historicamente estiveram alheios. Seria então o momento em que aquela estética do abandono, que dominava o local, receberia a graça dos investimentos públicos para a melhoria da qualidade de vida da população. Entretanto, essa esperança durou muito menos do que o tempo levado para finalizar a obra, e já anunciava que o projeto não adentraria o bairro, não resolveria os problemas, mas continuaria afetando os seus moradores.
A Orla do Porto, que deveria receber os turistas para a Copa do Mundo de 2014, só foi entregue dois anos depois, no réveillon de 2016, ainda inacabada. Apesar de ter possibilitado um espaço de lazer com uma estética agradável aos visitantes, muito pouco foram os benefícios para os moradores do bairro, tão flagelado pela ausência do poder público, que levou a reforma a um processo de gentrificação. As pessoas em situação de rua tiveram sua situação agravada, uma vez que a praça que ocupavam foi reformada de maneira a impossibilitar a permanência deles e muitos casarões do entorno foram lacrados, albergues fechados e as pessoas ficaram totalmente a margem desse processo, deixadas à própria sorte nas calçadas.
Essas pessoas que ficaram sem assistência continuam no Porto, em uma grave situação de vulnerabilidade, e enquanto ainda não tombaram pelas políticas de higienização e assepsia social, que são as principais políticas dedicadas pelo poder público à população em situação de rua, seguem sobrevivendo com a ajuda de ações beneficentes espontâneas por parte de grupos de assistência social e fiéis de igrejas.
Além das orações, os grupos ecumênicos ajudam com roupas, cobertores e principalmente comida, com a distribuição de marmitex no almoço ou na janta. Logo, as pessoas se aglomeram no entorno e com todo respeito retiram sua marmita. Ao passo que alguns começam a se alimentar, outros continuam cachimbando.
Muitas das pessoas que vivem em situação de rua sustentam algum tipo de vício e vivem em grupo, como uma comunidade nômade informal. O álcool e a pasta base estão na essência da doença que os levaram a abandonarem suas famílias e permanecerem nessa condição na rua, entregues à própria sorte. São muitas as marcas de doenças, agressão e abandono que se inscrevem de forma visível no corpo de cada um deles.
Dentre as várias pessoas em situação de rua no bairro do Porto, o ancião Iaia chama a atenção pela sua larga idade, com cerca de 60 anos é o mais antigo a estar nas ruas. A pouca mobilidade o obriga a ser empurrado em um carrinho de bebes improvisado, sempre com seu companheiro João Paulo, ambos dependentes do álcool.
Eis que ambos rompem o coro da oração para gritar “Nós tamo morrendo na rua, nós tamo morrendo na rua…”, antes de fazer um apelo por doações.
Logo à frente, uma gestante chama a atenção para a sua condição e demonstra que, para além do Porto, são vários os locais ocupados pela população em situação de rua, sempre na iminência de um processo de assepsia social, do momento em que serão varridos para debaixo do tapete, em que trocarão a vida na rua pela morte nas ruas, sem possibilidade de escolha.
Existe, no inconsciente da sociedade, uma distância que os separam da população em situação de rua, seja pelo medo ou pelas construções simbólicas ligadas à violência que dominam o repertório da imprensa e do poder público no que tange à população de rua, mas esta condição só é rompida e a humanização reestabelecida a partir do contato, de se desprender de pré-conceitos e se aproximar, para conhecer de perto historias de vida que continuam a r-existir nas ruas.