Na base do VLT

Texto e Fotos: Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski

Foi-se o tempo em que as memórias daquele casarão estavam atreladas ao funcionamento de um centro comercial que pouco interviu no cotidiano da cidade, até a chegada de um megalomaníaco projeto que o colocaria no epicentro de um conflito social. O tão prometido e esperado Veículo Leve Sobre Trilhos, que facilitaria o transporte público coletivo e integraria as regiões de Cuiabá e Várzea Grande, nunca se concretizou e, mais que isso, provocou profundas alterações no desenho urbano e social da cidade, devastou árvores, canteiros, casas, comércios e famílias que compunham a denominada Cidade Verde.

À medida em que avançavam as obras para a copa do mundo de 2014, ficava evidente a iniciativa por parte do poder público em levar adiante um projeto de gentrificação. Com os casarões históricos lacrados, em decorrência de uma letargia do IPHAN, processos de higienização social sendo promovidos por toda a cidade, levaram a população de rua a se reunir paulatinamente em torno do Casarão, na Ilha da Banana, que teve sua demolição iniciada nesta semana.

Cinco anos depois, as sobras da copa são o abandono, tanto do ponto de vista estrutural, com os trens e trilhos enferrujando a sol e chuva, quanto da perspectiva social e humana, uma vez que a população em situação de rua continua desamparada. Aquele despercebido centro comercial passou a figurar como protagonista de grandes conflitos, nos remetendo em alguns momentos à situação da cracolândia em São Paulo, guardada as proporções. A ausência de políticas de assistência social e saúde mental agravaram a situação, que acabou sendo tratada como caso de polícia, aumentando a tensão entre dependentes químicos e sociedade, reduzindo aquele espaço, no imaginário social, como um reduto de criminosos, bandidos, ou ainda, noiados, bichos entre outros adjetivos relatados, que despem os moradores do Casarão de humanidade.

Essa situação provoca um grande paradoxo em torno da invisibilidade social. Eles são invisíveis quando estão espalhados em seus solitários percursos, mergulhados em suas fraturadas singularidades, se esgueirando pelas sombras entre becos e vielas para sobreviver à violência da polícia. Porém, se tornam gritantemente visíveis quando se reúnem em comunidades informais, se organizam dentro de um casarão que soma quase cem moradores, articulam amizades e relacionamentos, se fortalecem enquanto agrupamento social e se compõem como familiares que cuidam uns dos outros, afloram o medo de parte da sociedade que agora os vêem como um risco em potencial, um perigo iminente.

Essa desumanidade imposta aos moradores do Casarão é desconstruída a partir das histórias de vida que povoam aquele espaço. Josi caminha no subsolo, abraçada com sua boneca, que acabara de comprar por cinquenta reais. Ela não vive ali, é uma opção que considera segura para consumir a pasta base, uma vez que seu esposo, que não é dependente, trabalha a poucos metros de distância. Ela tem três filhos que estão com sua mãe, pois perdeu a guarda das crianças por conta do vício. Seu enteado às vezes lhe faz companhia no Casarão, pois também é dependente químico. Ela não trabalha e o seu esposo financia o vício dos dois, para que não precisem roubar.

Se existem atualmente cerca de cem moradores no Casarão, a circulação de pessoas por aquele espaço chega a ser três vezes maior, principalmente no período da noite, isso pelo fato de muitos não residirem ali e enxergarem no casarão uma forma segura de consumir pasta base. Muitos são trabalhadores, possuem famílias estruturadas, vêm do berço da classe média, e possuem todo um repertório de histórias que os levaram até lá. O Professor é um grande exemplo, músico baiano que tocou por algum tempo no Olodum, gravou centenas de músicas, dezenas de discos, deu aulas de percussão para crianças e adolescentes, trabalhou em projetos de inclusão social na periferia, hoje se encontra em situação de dependência. Também não mora no casarão, mas o frequenta cotidianamente para o consumo de pasta base e relata o preconceito que sofre pelas ruas da cidade: “Ei, você! Que atravessa a rua quando a gente passa, que esconde a bolsa quando a gente vê. Não precisa correr, porque a gente também tem medo de você”.

Seo Josué, com seus cinquenta e poucos anos, é jardineiro e trabalha só para sustentar seu vício, todos o conhecem na região, sempre capinando terrenos, incluindo o espaço dos bombeiros no centro, com quem divide inclusive o almoço. Sua índole não o permite roubar, mesmo quando quer fumar. Com dezesseis anos de idade, ainda morador de Rondônia, durante uma pernoite em um motel, sua namorada, que fazia uso da pasta-base, sugeriu que ele experimentasse. Largou seu whisky para usar o cachimbo “e estou experimentando até hoje”.

Para quem vive ali, adequa o seu canto da forma como entende. Apesar do subsolo não apresentar divisões estruturais que separem ambientes, o colchão e as tralhas marcam o espaço de cada “casa”. Daniela é uma das moradoras que nos despertam a atenção pelo cuidado com seu lar. Na “entrada”, uma Bíblia aberta, o restante do espaço é ocupado por brinquedos que remetem a uma casa de verdade, como cozinha, sala e quarto, decorado com um mural repleto de poesias e fotografias de revista. Em alguns momentos ela aparentava confusão, quando já não tinha mais pasta-base e nem dinheiro, passou a ciscar o chão, isto é, procurar farelos de outros dependentes que possam eventualmente ter caído no chão, e no meio do delírio da abstinência qualquer coisa colocada no cachimbo se tornaria um alívio ao vício.

Dividindo o mesmo espaço do subsolo do Casarão, morava a Vó, uma mulher idosa bastante respeitada pelos outros moradores, que perdeu uma perna em decorrência de uma trombose no joelho e esteve recentemente presa por tráfico de drogas. Em virtude da demolição do prédio, ela se mudou para o piso superior do casarão, no único bloco que fora destinado aos moradores durante o processo de demolição. É uma escolha dela morar ali, ela não quer ir para abrigo ou para centro de recuperação “só saio daqui à força ou se me derem outro lugar para morar”, frase que não foi diferente de outras pessoas, como Pezão e Luiza.

Pezão estava arrumando suas roupas para lavar na casa de sua mãe, como sempre o faz uma vez por semana. Ele decidiu morar no Casarão para não incomodar mais a família com suas escolhas, depois de tantas passagens pela polícia, atualmente usa tornozeleira eletrônica e afirma não dever mais nada para a justiça. Com um discurso político muito coerente e consistente, ele argumenta o desamparo social pelo qual passam os moradores da Ilha da Banana. Tenta todos os dias conseguir emprego, porém o fato de ser ex-presidiário torna o processo muito mais difícil:

“por isso que muita gente rouba, furta, vai pro crime, porque a sociedade só condena, ninguém vem aqui pra oferecer trabalho, oferecer ajuda. Quando vem aqui é só cacete, batem até em senhora. Quando vê que já puxou cadeia aí que não consegue nada mesmo, o que vai sobrar pra gente sobreviver? Agora tão derrubando tudo, acham que vão acabar com o problema. A gente só quer um lugar para morar, se não derem nós vamos sair daqui e invadir outro lugar, ou vão matar a gente?”

Luiza é uma das mulheres que acompanha Pezão em sua revolta e desabafo. Assim como ele, tem total consciência do desamparo. Apesar da situação de vulnerabilidade e miséria, ela sempre carrega um grande sorriso no rosto. Estava fazendo a mudança de suas coisas do subsolo para o anexo superior, ocupando um dos quartos com seu filho e esposo, que vivem juntos no Casarão e também são dependentes. Sobre o VLT, ela vaticina: “a demolição é pequena e os viciados continuarão aqui mesmo, e o VLT é só mentira e ilusão do governo”.

No fluxo constante de idas e vindas pelos corredores destruídos, escadas e lixo que compõem o percurso do piso inferior ao superior, um dos apartamentos chama atenção pelo cuidado e organização, bem diferente do encontrado nas outras salas do casarão. É a Suíte 14, considerada cinco estrelas pelos residentes, onde vive um casal que pouco contato tem com os outros moradores. O quarto é trancado com corrente e cadeado, em seu interior existem diversos móveis, roupas, banheiro com tambor de água, eletricidade, armário com alimentos e produtos de beleza. As paredes guardam declarações de amor entre o casal. Ninguém comenta sobre quem vive ali, permanecendo uma incógnita que paira sobre a Suíte 14, ainda que seus moradores se mostrassem muito receptivos e educados.

Em meio ao movimento, surge Ana Carolina, sempre bem vestida e maquiada, usando óculos de sol e levando “Calolzinha” nos braços, seu bichinho de pelúcia. Ela é mãe de quatro crianças, sendo duas delas morando com o pai e outras duas com a mãe dela. Às vezes, os dois filhos mais velhos aparecem para visitá-la, e é quando ela sempre se promete retornar para sua casa, da qual saiu há três meses atrás para viver na Ilha da Banana.

Berenice é uma das moradoras que deseja abandonar o vício. Durante a demolição do casarão, ela é uma das únicas pessoas a aceitar ir para uma clínica de reabilitação. Ela arrumou sua mala e esperou durante horas a vinda dos agentes de saúde para o seu “resgate”. Ansiosa, perguntava a todo momento se a equipe que iria levá-la à clínica havia chegado, no entanto ninguém aparecia. Cansada, ela deita na cama com seu balão de coração, consciente da escolha de largar o vício e continua esperando a equipe: “eles já chegaram? eles já chegaram?” pergunta repetidamente. Mais de três horas se passaram, e nada dos agentes, até que ela finalmente fala: “Bom, já que eles não chegaram até agora, dá tempo de eu ir fumar pela última vez”, ela sobe o Morro da Luz até desaparecer e não mais retornar. Está grávida e é mãe de seis filhos.

Um dos pontos que conecta as histórias em torno do Casarão é a dependência química, física e psíquica da pasta base, pequenas pedras com tom amarelado, sobra das sobras da cocaína, misturada a uma dezena de produtos tóxicos, com alto poder viciante e destrutivo.

A insalubridade derivada da vida na rua, juntamente com as consequências do vício, levam os moradores a compartilharem, mesmo sem querer, diversas doenças como tuberculose, hanseníase, sífilis e outras sexualmente transmissíveis. Os moradores relatam que não existe uma visita sequer de agentes da saúde pública para conter epidemias ou fazer a medicação dos doentes. O consumo da pasta-base leva muitos a perder os dentes, travar os músculos, ter espasmos nervosos, ataques epilépticos e deteriorar seus corpos e mentes.

   

No cerne do vício, esses fatores estão atrelados, muitas vezes, à condição social e econômica dos dependentes, muitos deles, como afirmado pelos próprios, vindos da margem da periferia. Entretanto, é cada vez maior o número de dependentes provenientes de classes mais abastadas, com famílias estruturadas e de poder econômico, que frequentam a região para consumo, e que possuem um tratamento da sociedade e da polícia muito diferenciado “esses playboys tem vergonha de alguém ver eles entrando aqui no Casarão, então eles pegam e fumam no Morro da Luz”.

A questão demanda um esforço de Estado e da sociedade para compreender profundamente a situação pela perspectiva social e de saúde pública, exigindo inclusive políticas mais eficientes de assistência social e saúde mental que tratem com a devida humanidade este caso, além de disponibilizar moradias dignas para abrigar os dependentes e apoio aos familiares. Demolir o prédio não trará mudanças significativas, a não ser para o olhar apressado da vizinhança que não terá mais em sua vista aquele imundo monumento erigido à miséria e ao abandono, uma ode à ineficiência e incompetência do poder público, não terão mais os dependentes a importunar os vizinhos por um prato de comida ou um copo de água, não terão suas roupas furtadas do varal, enquanto governo e prefeitura tentam varrer o problema para debaixo dos escombros.

* Todos os nomes desta reportagem são fictícios.

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