Nas veias abertas da amazônia

Texto e Fotos: Ahmad Jarrah

A extensão territorial de Mato Grosso e a distância entre as regiões, que abrangem três ecossistemas distintos e complementares, pantanal, cerrado e amazônia, muitas vezes deixa encoberta as histórias de vida que compõem a rica diversidade natural e cultural do estado. Embarcar pelas veias abertas que nos deslocam pelo profundo noroeste do estado é mergulhar em meio ao infinito e exuberante que marca todo o caminho dentro da floresta amazônica, quase na fronteira com os estados do Amazonas e Rondônia.

Os mais de mil quilômetros que separam a capital Cuiabá do município de Colniza, no extremo noroeste do estado, são extenuantes e ao chegar na localidade que outrora já foi conhecida como a cidade mais violenta do Brasil, revelava que a principal violência a qual os moradores eram vítimas era a falta de assistência do estado. Não imagino qualquer pessoa que possa se orgulhar do título que não seja pérfida e indigna de viver em sociedade, e os colnizenses rechaçam esse estereótipo atribuído à cidade, a população não quer ser reconhecida como violenta e critica a ausência do estado. A dificuldade no acesso à região é colocada como um empecilho para o desenvolvimento, e a distância faz com que os clamores não alcancem os devidos ouvidos. Enquanto o tempo passa, não é possível sequer realizar um saque em nenhum dos únicos dois caixas eletrônicos do Banco do Brasil existentes na cidade, em uma agência que sequer abre as portas aos correntistas. A situação pode ser observada por duas lentes, a mais tradicional pode comprovar o medo da violência, uma vez que a agência já foi atacada anteriormente e definiram que não seria mais disponibilizado dinheiro em cédulas correntes. Já para os moradores, que atravessam duzentos quilômetros de estrada de chão para conseguir sacar dinheiro em espécie, a situação reflexo da inércia do poder público, que não fornece condições para que a cidade se estruture e fornece precariamente uma assistência básica.

Próximo dali, no distrito de Guariba, em uma localidade conhecida como Taquaruçu, um crime contra trabalhadores rurais chocou todo o país. Mais uma vez Colniza estaria nas manchetes policiais, o que levaria finalmente a sociedade a lembrar que a cidade existe. Despertou o Estado da letargia, com o envio de tropas militares à região. Nove trabalhadores rurais haviam sido chacinados com requintes de crueldade, por um problema histórico nunca resolvido, a disputa de terras por madeira e minérios. Se o município de Colniza já sofre dificuldades, em Guariba o abandono é completo. Não há qualquer rua asfaltada, pouquíssimos pequenos comerciantes vendem produtos de necessidade básica, não possui sinal de qualquer operadora telefônica e o contato com o mundo é feito à maneira antiga, televisão, rádio e algumas pessoas que possuem wifi.

Ainda que seja fim do período de chuvas, há muita lama acumulada por todo lugar e é impossível caminhar pela cidade sem que se formem grossas camadas de barro embaixo e em torno dos sapatos, por onde quer que se vá. Os pontos de ônibus escolar são improvisados com folhas de palha para proteção do escaldante sol, que com a umidade torna tudo muito mais quente.

A inacessibilidade é tamanha, que as caminhonetes traçadas dos preparados oficiais do BOPE estiveram diversas vezes atoladas pelo caminho e nem nós escaparíamos, ao ficarmos presos na lama que tomava a cabeceira de uma pinguela e sermos resgatados quase cinco horas depois.

As viaturas da polícia militar e a presença de jornalistas romperam o lento curso cotidiano da pacata cidade. O tecido econômico que compõe a região gira principalmente em torno da coleta de castanhas e borracha nas áreas de reserva, compartilhado com a criação de gado e a extração ilegal de madeira, que envolve tanto grandes e poderosos fazendeiros, que utilizam guaxebas, uma espécie de pistoleiro, quanto por pequenos grileiros, trabalhadores rodados que enxergam uma possibilidade de mudar de vida. Dessa forma, o conflito nasce na falta de políticas agrárias, que levam trabalhadores e fazendeiros a disputarem palmo a palmo os milhares de hectares de terra na tríplice fronteira (MT, AM e RO), que não possuem registro de posse, são áreas devolutas ou ainda áreas de posse da União ou do Estado.

José Antonio, 64 anos, nasceu no Rio de Janeiro, saiu de casa desde criança e se alimentava de lixo na rua. Já foi preso por tráfico e rodou o Brasil inteiro fazendo de tudo, coletava castanhas, cortava madeira, foi lavrador, carpinteiro, sapateiro e até policial. Na época do garimpo, comia copos de vidros em desafios feitos com colegas em botequins da vida. Conta que, ao menos, numa coisa a falta de dinheiro na agência bancária o ajudou, ele não conseguiu sacar o dinheiro necessário para viajar junto com as outras famílias para Taquaruçu e escapou da chacina. Mas não desistiu, ainda pretende ir para a região e revela não ter nada a temer “quero voltar lá pra conseguir uma terrinha, cuidar da minha mulher e do meu afilhado que é deficiente”. Dona Maria e Zé Gabé são artesãos e estão entre os primeiros moradores a desembarcar em Guariba e moram na comunidade de São Pedro. Eles não possuem filhos, “mas pegamos um casal pra criar”, conta desconsolada Dona Maria, triste por não ter hoje seus filhos de criação ao seu lado. A mãe biológica ofereceu a filha à venda, pelo valor de 350 reais. Dona Maria queria pegá-la para criar, mas não tinha o dinheiro. Um comerciante da região, ao perceber que o bebê estava desamparado, ofereceu pagar a quantia desde que Dona Maria aceitasse cuidar, o que ela prontamente se dispôs. A garota pesava apenas quatro quilos com oito meses de vida, quando chegou à sua casa. Ela ensinou a filha de criação a fazer cestos utilizando palhas da região, e com o passar do tempo a garota foi ganhando independência, até acabar fugindo de casa com um namorado e nunca mais dar notícias, não sem antes desabafar desaforos contra Dona Maria, acusando-a de não ser sua verdadeira mãe. Ainda magoada, ela conta a história enquanto oferece um cesto que a filha havia feito antes de partir.

Um grupo de grileiros está reunido em um dos três únicos postos de gasolina do distrito, afirmam que os madeireiros que acabaram abrindo as estradas e trazendo o desenvolvimento na ausência do estado, e que são vários os escândalos de corrupção envolvendo os míseros recursos que alcançam a região, como o da escola que já está caindo ou da caixa d’água milionária que nunca verteu sequer uma gota. Debatem a possibilidade dos pequenos trabalhadores começarem a grilar as terras entre si, pois os grandes invasores, poderosos fazendeiros, estão cada vez mais fortemente armados. Os questionamentos avançam na noite, mais dúvidas que certezas, pouco do necessário a iluminar o caminho que se segue.

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