Os 113 anos de Antônio Mulato

Texto: Rodivaldo Ribeiro
Fotos e vídeos: Bruna Obadowski e Ahmad Jarrah

Como se faz para celebrar o aniversário do homem mais velho do mundo? Na resposta poderia caber o próprio mundo, nós todos, as histórias de cada um e muitas outras. Nenhuma seria satisfatória. Eu passei mais de um mês tentando jeitos de definir como se faz isso. Em vão. Por sorte, a família de seu Antonio Benedito da Conceição sabia muito bem. E eles foram pelo simples: um banquete, muita dança, festa, alegria, alguns tragos de bebida forte, muita cerveja. Tudo como manda a tradição, no primeiro fim de semana após o 12 de junho, data do nascimento dele, em 1905.

“Não havia como ser diferente, quem é que faz 113 anos no mundo?”, pergunta dona Sebastiana, 65, uma das centenas de sobrinhas-netas de seu Antônio Benedito da Conceição, conhecido no mundo inteiro, no entanto, apenas como Antônio Mulato. Diferentemente da primeira entrevista feita com ele, por ocasião dos seus 111 anos, ele não tem mais forças para envergonhar o repórter 71 anos mais jovem, ao se atirar ao chão e fazer cinco, seis flexões de braço.

A saúde frágil o impede, o mal de Parkinson piorou muito e o impede até mesmo de completar o talvez mais emblemático gesto feito por ele naquela ocasião — o brinde com um daqueles copos clássicos de dose. Na primeira vez, uma pinga, desta, vinho.

Com a voz baixa e a audição bastante prejudicada, ele se recusa à rendição e consegue, de maneira ainda mais impressionante que o flexionar-se, formular raciocínios e frases. A visão, me conta, piorou muito nos últimos dois anos. Após algum tempo, conseguiu lembrar-se de mim. Emocionado, me aproximo e ele convida para a festa, “mas vai ser só amanhã”, me adverte.

Eu rio, ele também. Aperto-lhe as mãos trêmulas e ele já emenda: “toma um trago comigo?”. Pergunto à neta, na porta do quarto, se é permitido. Ela fala com firmeza “só um pouquinho, viu, vô”? E saca os copos. Desajeitado como sempre, coloco-lhe o copo nas mãos de tamanho desproporcional ao pequeno corpo dele. Ele levanta o copo à altura do peito, brindamos e há cinco segundos de um silêncio algo constrangedor, até que ele me pede: “leve à minha boca pra eu beber, por favor”?

Completamente sem graça, obedeço. Ele sorve o gole com gosto e repete a lição que me fora dada em 2016. “A única coisa que vale a pena nesta vida é sorrir, cantar, dançar, procurar estar bem com as pessoas e com a vida, não importa o que aconteça. Tristeza sempre vai ter mas não pode deixar tomar conta”.

Eu sorrio, meus amigos fotógrafos nos clicam o tempo todo. Sinto-me meio ladrão da força primal de existência contida naquele homem. Começo a pensar que escrever sobre ele talvez seja retirar muito do que havia de mágico em ter tocado, abraçado e trocado ideias com uma entidade viva.

Algo envergonhado, interrompo a conversa, ele demonstra um cansaço visível.

E havia motivos para isso, durante o dia, dezenas de pessoas o foram visitar, inclusive um documentarista e outros jornalistas. Me zango com a equipe. O quero deixar descansar. Ele próprio quebra o clima tenso ao começar a cortejar a fotógrafa. Lembro-me instantaneamente da outra coisa pela qual ele sempre dizia valer muito a pena viver – as mulheres, em toda sua complexidade e poesia.

“Só não pode querer ficar tentando entender elas, senão você fica louco. Depois de todos esses anos, é única coisa que é sempre nova. Não dá pra saber como agradar todas as mulheres. Só podemos tentar e tentar. Mas eu gosto de tentar”, disse-me, com um sorriso maroto, dois anos atrás.

No início deste junho recentemente terminado, seu Antonio Mulato foi o epicentro de uma celebração cujos preparativos começaram um dia antes, com o abate de uma res, o descarno desta, e o descascar de nada menos que 90 quilos de mandioca e nada menos que uma penca inteira, com três cachos, de banana da terra verde.

Foram cozidos também absurdos 60 quilos de arroz e uma quantidade não contabilizada mas que chegava às dezenas de cabeças de repolho, uma centena de tomates, cebolas, alho e especiarias para o tempero e a salada servida junto com os tradicionalíssimos guisados de carne com mandioca e carne com banana verde. Deliciosos todos, como só poderiam ser por virem diretamente das mãos de uma legítima cozinheira de roça, que só sabe lidar com fogão de lenha, a própria dona Sebastiana.

Há uma semana, o Senado lembrou-se da urgência de homenagear alguém do tamanho da importância que aquele homem representa para a cultura negra e a resistência quilombola particularmente, ao indicá-lo para a Comenda Abdias Nascimento, nesta semana.

Nada mais justo para alguém nascido somente 17 anos depois da assinatura da Lei Áurea e que passou a vida inteira sob ameaça de fazendeiros, ávidos por expulsar a ele, seus amigos, parentes e conhecidos da área de 11.273 hectares onde está situada a comunidade quilombola de Mata Cavalo.

Se depender dele, tudo que ele representa permanecerá vivo séculos afora. Se entregar? Desistir? São palavras sem sentido para seu Antonio Mulato. “Se Deus quiser, ainda vivo mais uns dois anos e faço uma festa de 115 anos. Se ele não quiser, tá bom também, eu vivi bastante. Eu vivi bem”.

Disputa entre fazendeiros e quilombolas atravessa gerações e chega a 135 anos

A batalha judicial pelos 11.273 hectares do quilombo de Mata Cavalo ultrapassa gerações e coloca em lados opostos fazendeiros e descendentes de escravos alforriados e cativos que ocupam o pedaço de terra desde o início da colonização em Mato Grosso e vivem na região até os dias atuais.

Localizado onde hoje é o município de Nossa Senhora do Livramento, lá há pelo menos seis comunidades distintas, com certas divisões ideológicas e territoriais. Devido a essas, aliás, é que nasceu a nomeação atual, de Mata Cavalo de Baixo e Mata Cavalo de Cima, ambas derivadas da Sesmaria Boa Vida. Lugar que, há 166 anos, desde pelo menos 1850, era de propriedade de Ricardo José Alves Bastos e Ana da Silva Tavares.

É uma região cobiçada desde as primeiras bandeiras paulistas, comandadas então por Paschoal Moreira Cabral, que designou a Fernão Dias Paes a garantia de posse da região naqueles tempos sob domínio dos índios coxiponés; embora quem acabasse por requerer ao capitão-general de Mato Grosso, D. Antonio Rolim de Moura, a propriedade de uma sesmaria localizada entre três córregos mais tarde denominados Estiva, Mata Cavalo e Mutuca, fosse José Paes Falcão, filho de Fernão Dias Paes.

Mas tudo começa a se complicar mesmo na volta ao século 19, no momento em que, no testamento aberto de Ricardo José Alves Bastos, ele coloca uma cláusula de libertação de seus 38 escravos depois que sua esposa Ana morresse.

Esse ato foi complementado pela própria dona Ana com a doação de sua Semaria Boa Vida a esses mesmos escravos via documento lavrado em um cartório em 1883. Decisão polêmica para aqueles anos, pois a escravidão oficialmente só terminou cinco anos mais tarde, e a mentalidade dos antigos proprietários de gente não se transformou tão rápido quanto as letras da lei.

Assim, os demais proprietários rurais daquele tempo, a porção considerada elite do Estado, não aceitavam que suas antigas propriedades vivas fossem donas de porções de terra.

Desde então, todas as artimanhas legais –– como o sumiço de documentos –– e ilegais passaram a ser utilizadas, como espancamentos, ameaças e execuções de parentes ou dos proprietários em si. O ateamento de fogo nas residências com pessoas dentro também fazia parte das ações.

“O livro n. 49 do Tabelionato de Notas de Livramento, que continha as anotações jurídicas legitimando a doação feita aos escravos cativos e também libertos de D. Ana, desapareceu de forma misteriosa. Curiosamente, a referida senhora é descendente das famílias da oligarquia dominante na região, que falsificaram todo tipo de documentos para suprimir quaisquer direitos de posse da terra por parte dos negros da Sesmaria Boa Vida”, escreveu o historiador Silvânio Paulo de Barcelos, em seu trabalho de pós-graduação pela Universidade Federal de Mato Grosso O Quilombo Mata Cavalo: Territorialidade Negra no Mundo Globalizado, e reproduzido aqui em sua versão publicada na revista África e Africanidades em maio de 2010.

A peleja pelas propriedades, que em conjunto tomam cerca de seis quilômetros de largura por doze de comprimento, nas proximidades de Nossa Senhora do Livramento e Poconé, seguem quentes nos dias de hoje.

“Nossos problemas com os criadores de gado nunca terminaram. Eles jamais aceitaram que aqui fosse terra de escravos e depois quilombolas. Tentam de toda maneira tomar essas terras”, conta a pedagoga Eliane Arruda, diretora da Escola Estadual Tereza Conceição Arruda, localizada na comunidade de Mata Cavalo.

Ela conta também que jamais houve segurança jurídica quanto ao pertencimento legal das terras de seus pais e avós, pois se nos primeiros tempos a tática era da intimidação, como lembra seu Antonio da Conceição, os fazendeiros passaram a usar os vários tipos de artifícios jurídicos disponíveis em nossa legislação para suas reintegrações de posse.

“Isso até deu uma melhorada depois que o Lula assinou aquele decreto [o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003], mas até hoje tem gente que recebe intimação e sabemos que a disputa ainda não chegou ao fim. Confiamos que a terra é nossa e que vamos poder ficar aqui até o fim desta geração”, ressalta a pedagoga. O problema, pensa ela e também o mais antigo ancião da comunidade, é a sensação de desterritorialização comum entre os mais jovens.

Mais afeitos aos apelos da modernidade, grande parte, talvez a maioria, não vê necessidade de manter as tradições culturais do lugar. Simplesmente moram ali. Isso pode e certamente será usado como argumento para futuras investidas dos fazendeiros.

Pelo menos por hora, de acordo com o trabalho do historiador Silvânio de Barcelos, os indícios caminham a favor da comunidade de Mata Cavalo, pois há documentos com as declarações de vontade de D. Ana da Silva Tavares guardados no Arquivo Público de Mato Grosso e também no Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat).

Há também um processo de investigação de registro de doação feito pela Defensoria Pública estadual. Nesse trabalho, há inventários, livros de registros fundiários, relatos de viajantes, padres e militares. Tudo isso constitui argumento para postular direitos de terras em juízo.

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