Texto: Ahmad Jarrah e Juliana Palmo
Fotos: Ahmad Jarrah
Fotos Aéreas: Caio Mota
Esta reportagem é publicada com apoio do Rainforest Journalism Fund, Pulitzer Center.
Há um suspense que escapa à narrativa jornalística e se esconde por debaixo das árvores da Amazônia, um duelo entre o medo e a bravura. Ao largo dos noticiários policiais que registram eventualmente os grandes massacres na região norte de Mato Grosso, na tríplice fronteira com Amazonas e Rondônia, coberta pelas matas amazônicas, existe a luta para preservar e converter a floresta.
O início dessa jornada é Aripuanã, um fértil e rico local, onde já é possível dimensionarmos a vegetação nativa da região amazônica e nos deslumbrarmos com a grandeza de seus recursos naturais. Além das belezas, na cidade é possível percebermos como a cobiça do capitalismo predatório leva a um enredo de mortes e destruição.
Há 106 anos atrás, essa região foi palco de uma das maiores expedições científicas comandada pelo presidente americano Theodor Roosevelt com o Marechal Candido Rondon, à época coronel. O grupo formado por militares e cientistas, teve esses dois líderes que atravessaram milhares de quilômetros de florestas e rios adentro, sem causar a carnificina que hoje assola as comunidades indígenas e seringueiros que ainda vivem na região. Do contato com os povos indígenas, ficou a emblemática morte do cão que acompanhava a expedição, um recado dos Cintas Larga que acompanharam da outra margem do rio o movimento da tropa por quilômetros, sem qualquer contato.
Lá onde os Cintas Larga conceberam sua origem, às margens de um Igarapé sagrado, onde na cosmologia indígena o criador separou indígenas e não-indígenas. O local sagrado é o ponto da gênesis indígena, onde estes estabeleceram suas vidas e credos, e construíram um sistema de sobrevivência baseado na preservação da floresta. Nessa mesma terra, a destruição travestida de progresso, viria trazer a expulsão de um povo milenar de suas casas. A anciã Maria Kakay conta como era a vida quando os Cinta Larga viviam ao lado das duas grandes cachoeiras sagradas, o Salto das Andorinhas e Dardanelos.
“Havia uma grande cobra que ajudava a gente a atravessar o rio, de uma margem a outra. Com a chegada do homem branco, veio a destruição dos nossos lugares sagrados e a morte da cobra”.
Depois de anos de embate, uma hidrelétrica e uma pequena central hidrelétrica (PCH) tomou por completo a antiga terra indígena, deslocando o povo Cinta Larga para casas improvisadas na cidade. Desde então, os Cinta Larga não retornam mais para as cachoeiras. Seus antigos cemitérios acabaram dinamitados durante a construção dos projetos de geração de energia e agora sua mitologia sagrada cedeu lugar a uma guarita.
Para entrar na região dos saltos é necessário passar por um segurança privado que coleta nome e documento dos visitantes interessados em fazer selfies na cachoeira.
A paisagem natural, antes um grande aldeamento do povo Mondé, foi tomada por concreto, antenas, torres e cabos elétricos. Apesar da visitação constante, nem sequer um projeto de turismo existe para o local. As visitações são um movimento espontâneo. Os indígenas da etnia Cinta Larga não receberam qualquer indenização ou ajuda. E as promessas feitas pelos empreendedores das hidrelétricas nunca foram cumpridas, como a Casa da Memória Cinta Larga.
Daquele ponto em diante, em direção ao noroeste de Mato Grosso, a viagem segue por rodovias sem asfalto, deixadas pelo Estado à mercê de sua própria condição, banhada pela chuva constante do tempo das águas, que marca o verão tropical. Aos poucos a terra avermelhada torna-se lama, por onde, eventualmente, atolam caminhões carregados de madeira – um dos vetores do conflito que transforma a região numa das mais violentas do Brasil.
Solidão de árvore
Floresta adentro, os marcos legais que garantem a proteção da floresta, em áreas de preservação ou mesmo reservas extrativistas, são constantemente assediados pelas invasões em busca de terra, minério e madeira. Pela maltratada estrada é possível notar inclusive os efeitos imediatos da proposta de liberar a mineração em terras indígenas, do presidente Jair Bolsonaro, o recente projeto de Lei de número 191/2020.
As terras sob jurisdição do Estado Brasileiro também estão sob outros ataques. A máquina do desmatamento torna as derrubadas na região duplamente lucrativas. Por um lado os grandes troncos de madeira são vendidos em um mercado bastante valorizado. Já o que sobra na terra é queimado para dar lugar ao pasto ou ao plantio de soja transgênica.
Outro exemplo de subversão dos marcos legais de proteção da floresta é a castanha-do-Brasil, amplamente difundida no mundo. O corte da árvore foi proibido, mas é comum encontrar na região uma ou outra castanheira solitária, rodeada por monoculturas regadas a agrotóxicos. Sem outras castanheiras ao redor, a árvore não consegue produzir o ouriço da castanha, e vai se tornando infértil, até tombar por falta do dossel florestal. A árvore morre de solidão.
Dentro da Reserva Extrativista Guariba Roosevelt, cercada e pressionada constantemente por conflitos, há um fio de esperança. Um modo de vida sustentável que tira a riqueza da floresta sem a destruir, mas que é desvalorizado como atividade econômica pelo mercado. Lá em uma colocação, como são chamadas as casas da população tradicional extrativista, Dona Raimunda explica como é possível viver da floresta sem derrubar uma árvore.
Às margens do Rio Roosevelt, Raimunda passa a contar sua história da cozinha, que preserva com sua mãe Dona Neide, de modo impecável. As panelas areadas são um tesouro que ostenta nas paredes de madeira dos cômodos, dividindo espaço com fotografias da família. O cuidado com o lar da família se estendia à floresta.
Mas não era só da pesca e da agricultura de subsistência que vivem os extrativistas do Roosevelt. “O que alimenta a gente é a árvore da vida”, disse em referência a seringueira, que não só sustentava sua família como a de todos os que vivem ali.
O látex extraído da seringueira e a coleta da castanha-do-Brasil consistem nas principais atividades econômicas dessa comunidade. “Antes era mais valorizado, o preço era melhor, atualmente se não fosse o projeto Pacto das Águas, não teríamos nem garantido o preço mínimo da borracha”, relata Raimunda, ao reconhecer a importância de uma iniciativa de apoio às associações extrativistas para a comercialização de seus produtos, que era patrocinada pela Petrobras e se encontra suspensa pelo governo de Jair Bolsonaro.
Conexão verde
O extrativismo é uma atividade sustentável, mas necessita da floresta para ocorrer. Para a produção da borracha, as seringueiras são talhadas em um formato triangular, permitindo que a seiva escorra para um recipiente. Depois de retirada, a seiva é seca e prensada até coagular e torna-se blocos rígidos de borracha, que são comercializados.
Já para a coleta da castanha-do-Brasil, os ouriços contendo a amêndoa são coletados no solo da floresta, depois são quebrados em uma intensa atividade comunitária, para depois serem comercializados no atacado, sem beneficiamento, o que derruba seu valor.
Outro recurso que tem atraído os extrativistas é a seiva de uma árvore conhecida como Sangue de Dragão, que possui a cor avermelhada e é utilizada para fins medicinais.
Esse modo de vida nativo contraria o modelo exploratório, estrangeiro, resultando em conflitos, ameaças e mortes. “É preciso ser muito forte para viver aqui”, diz Raimunda, “mas esse é o lugar onde a gente nasceu e viveu, então a gente precisa de coragem pra continuar vivendo e cuidando do que é nosso”, relata. A extrativista diz inclusive que já sofreu ameaças pela sua postura aguerrida em defesa da floresta.
Em algumas localidades da Resex, os fazendeiros invasores chegaram a cercar, com porteira e cadeado, o acesso às matas. A passagem dos moradores das comunidades está limitada à “liberação dos invasores”, o que muitas vezes só ocorre depois de um pagamento.
Cachoeiras e medo
Subindo o Rio Roosevelt na direção ao Amazonas, partindo das pequenas enseadas naturais nas quais as crianças se refrescavam do calor implacável e dos mosquitos, que aumentam em quantidade considerável nesse período do ano, navegamos por quilômetros pelas águas do antes rio Castanho e Rio da Dúvida.
Em 1913-1914 esse foi o mesmo percurso feito em condições bastante distintas e hercúleas pela expedição Rondon-Roosevelt, para alcançar um dos pontos intransponíveis para a navegação rudimentar das frágeis canoas que a tropa produzia em terras brasileiras, feitas de um tronco só de árvore. Atingimos o rápido Inferno, uma sequência de corredeiras e cachoeiras de pedras, pelas quais a água desce em velocidade e ao bater nas pedras, levantam ondas de até um metro de altura. Não há como não balançar dentro do barco.
O local histórico, além do encontro das águas amazônicas, é um ponto de sinergia entre Brasil e Estados Unidos. Foi nessa região, que Brasil e Estados Unidos produziam o maior acervo da fauna, flora, geologia e cartografia até então feitos na região. Hoje, um grande resort de luxo com apelo ecológico toma conta da paisagem. Ali turistas desembarcam por meio de uma pista de pouso particular. Famosos nacionais também já visitaram a região em busca de contemplação e descanso às margens de uma praia de areia fina que é banhada pelas águas castanhas do Roosevelt. A Pousada Roosevelt, esse oásis dentro da floresta, é mais um dos personagens desse imbricado conjunto de forças em disputa por uma porção de floresta.
Coragem para resistir
Estar dentro da floresta é uma experiência extenuante. O calor úmido traz dificuldades pra respirar, o suor escorre pelo rosto, nos olhos, em todo o corpo. A mata alta e densa esconde o céu e os mosquitos passam o tempo todo a se alimentar de nossos corpos, e algumas vezes inclusive a transmitir doenças, como a malária. Diante de todo esse esforço, a tranquilidade com que Chico Preto atravessa caminhos que só ele conhece e encontra as árvores que fornecem o seu sustento, em um cenário deslumbrante e perigoso, estimulam a ir cada vez mais adiante.
Ele é mais um seringueiro que resiste às margens do Rio Roosevelt. Apesar de sua resiliência, Chico reclama do preço da castanha, que está tão baixo que torna inviável o trabalho. “Agora estamos tirando o Sangue de Dragão, que tá mais valorizado que a castanha e a borracha”, diz.
Não há uma casa de ribeirinho que não receba os visitantes com uma mesa farta. Dentro de sua cozinha coberta por palha de babaçu, narra as dificuldades de viver em meio aos conflitos e desvalorização da borracha e da castanha. “Antes era muito melhor, valia a pena, a gente ganhava dinheiro, hoje só dá pra viver”.
Parece um movimento planejado a desvalorização das atividades econômicas sustentáveis em contraposição à valorização dos produtos provenientes das atividades ilegais, como a pecuária em terras invadidas, a madeira e o minério.
Para viver na região mais perigosa do Brasil, é necessário encarar a banalidade do mal, como nos lembrara a escritora Hannah Arendt. E como é incomum ter a percepção dessa realidade quando se vivencia o cotidiano que já carrega a sobrevivência como elemento indispensável para a existência. Seja pelos perigos da vida selvagem, ou mais rotineiramente pelas ameaças externas de usurpadores, a necessidade de se defender se impõe no dia a dia das famílias extrativistas.
Diante de tantas ocorrências de chacinas e massacres promovidos pelo crime organizado que se articula com o Estado – que fecha os olhos para a destruição empreendida na Amazônia – o medo é tanto que as crianças se escondem das visitas. É necessário conquistar a confiança para se aproximar.
Há mais de um século, a expedição Rondon-Roosevelt lançou luzes sobre uma região ainda desconhecida, deixando um legado histórico que contribuiu com o nosso entendimento da Amazônia. Agora, a floresta conta somente com a coragem que brota dos corações indígenas, ribeirinhos e extrativistas, que ainda pulsam pela sua defesa.
* Reportagem publicada com apoio do Rainforest Journalism Fund, Pulitzer Center.