Em ano marcado por queimadas, terras indígenas foram devastadas pelo fogo
Compartilhar
Os dados são do relatório “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019”, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e divulgado neste mês.
Texto e fotografias: Ahmad Jarrah Com edição: Bruna Obadowski
Os incêndios catastróficos que atingiram a floresta amazônica, o cerrado e o pantanal em proporções jamais vistas nos últimos dois anos, também deixaram sua marca histórica nas Terras Indígenas. Em Mato Grosso, estado que também é o maior produtor de soja do país, segundo análise feita pelo Instituto Centro de Vida (ICV), as queimadas bateram recorde histórico entre 2019 e 2020. O estado brasileiro com maior número de incêndios, traz uma atmosfera nebulosa que assusta as comunidades indígenas.
Segundo o relatório “Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019”, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e divulgado neste mês, oito terras indígenas localizadas em Mato Grosso estão entre as terras mais afetadas pelas queimadas no país, em 2019. As três primeiras são o Parque do Xingu, com 505 focos, Areões, com 591 e Pimentel Barbosa, com 487. Em seguida estão as terras Parabubure (443), Urubu Branco (416), Paresi (348), São Marcos (304) e Maraiwatsede (267).
O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil , reitera o retrato de uma realidade extremamente perversa e preocupante do Brasil indígena no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro na Presidência do país. Ainda, os dados indicam que, no total, 345 terras indígenas foram afetadas pelas queimadas no Brasil em 2019. “Assim como nos anos anteriores, a grande maioria delas, 272, são terras indígenas já regularizadas, que deveriam estar plenamente protegidas pela fiscalização do Estado”, apontou o relatório.
No território indígena São Marcos, juridicamente dentro da Amazônia Legal, na faixa de transição entre o bioma cerrado e o amazônico, a aldeia-mãe preparava, em 2019, ainda antes da Pandemia, uma grande cerimônia de iniciação para marcar a passagem dos adolescentes para a vida adulta. Porém, mesmo nos dias de festa, um sentimento de alerta já atormentava a comunidade: era o início das queimadas históricas nas aldeias.
Os incêndios em territórios indígenas aumentaram 87% em 2019 em comparação com o ano anterior. Em 2020, esse índice é ainda mais assustador. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), ao todo foram 46 terras indígenas (TIs) com focos de queimadas em 2020, distribuídas nos três biomas do estado. Mesmo sem ter finalizando oficialmente o período de estiagem em 2020, os focos já são proporcionalmente os maiores.
O relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019, aponta as queimadas como parte de um esquema criminoso. Segundo relatório, “as queimadas são parte essencial de um esquema criminoso de grilagem, em que a “limpeza” de extensas áreas de mata é feita para possibilitar a implantação de empreendimentos agropecuários, por exemplo. De modo resumido, assim funciona esta cadeia: os invasores desmatam, vendem as madeiras, tocam fogo na mata, iniciam as pastagens, cercam a área e, finalmente, com a área “limpa”, colocam gado e, posteriormente, plantam soja ou milho”.
Para o líder da etnia xavante Urebeté Ai’réro, cacique por 13 anos da aldeia São Marcos, uma das mais atingidas pelos incêndios, os discursos do presidente Jair Bolsonaro possuem relação com um aumento na animosidade contra os povos indígenas, que pode provocar um tensionamento na relação das comunidades com a sociedade branca, em especial a do entorno.
Sobre os incêndios, ele explica que o vento leva as faíscas a percorrerem grandes distâncias. Em alguns casos, os primeiros focos surgem em fazendas próximas, para então se espalharem pela região de floresta. Urebeté diz que dessa forma muitos territórios indígenas são atingidos, e critica posicionamentos do presidente Bolsonaro sobre não ceder mais nenhum centímetro de terra aos indígenas ou permitir que garimpeiros atuem em terras indígenas. Segundo ele, as decisões ambientais de Bolsonaro relacionadas à floresta prejudicam o próprio país, não sendo ruim apenas aos indígenas, mas a todos os brasileiros. Os relatos do Cacique Xvante são convergentes ao que aponta o relatório publicado pelo CIMI com dados de 2019.
Terras indígenas devastadas pelo fogo
Em agosto de 2019, os olhares do planeta voltaram-se ao Brasil, mais especificamente, à porção brasileira que ardia em chamas. Não bastasse o aumento expressivo dos alertas de desmatamento, indicados pelos dados colhidos por satélites que sobrevoam diariamente as florestas da região, nuvens de fumaça cobriram os céus de cidades por todo o país e viajaram até o Sudeste, onde fizeram a tarde da maior metrópole do Brasil, São Paulo, virar noite, fato que assustou toda a população brasileira.
Naquele mês, enquanto Urebeté refletia sobre os impactos dos discursos presidenciais na vida dos indígenas e acompanha a preparação para uma grande cerimônia ritualística, ainda antes da Pandemia, a comunidade recebia uma notícia pelo microfone do professor, que interrompeu as festividades. A aldeia vizinha Rainha da Paz, dentro do mesmo território, havia sido tomada pelo fogo. Urebeté se apronta e parte para socorrer.
O forte odor de fumaça tomava conta da estrada, margeada pela mata queimada, a medida que a aldeia Rainha da Paz se aproxima. Um cenário desolador reflete nos olhos do velho ancião, ao ver todas as cinco casas da comunidade, feitas de palha e madeira, arderem pelo fogo. Já não há mais nada a ser feito, está tudo perdido e dos olhos xavantes que vivem ali brotam a tristeza e desamparo.
Os característicos cabelos estavam cortados por uma tradição de luto, há apenas quatro dias atrás eles haviam perdido o patriarca ancião. Entre as famílias, há um deficiente que teve de ser carregado, pois não possui cadeira de rodas. Urebeté ouve atentamente os lamentos em idioma indígena e traduz o desespero e a necessidade. Perderam o pouco que tinham, geladeira, fogão, botijões de gás, roupas, colchões, tudo foi consumido pelo fogo, sobrara apenas o relento sob a lua cheia com a roupa do próprio corpo e uma ou outra coisa que conseguiram salvar.
A geladeira ainda em chamas, durante incêndio que atingiu a aldeia xavante Rainha da Paz, no Território Indígena São Marcos, e destruiu todas as casas. Mato Grosso, Brasil.Família da etnia Xavante em frente às suas casas destruídas pela queimada que atingiu a aldeia Rainha da Paz, Território Indígena São Marcos. Mato Grosso, Brasil.
Famílias indígenas da etnia Xavante desabrigadas após queimada destruir a aldeia Rainha da Paz, no Território Indígena São Marcos. Entre eles, um deficiente físico sem cadeira de rodas. Mato Grosso, Brasil.
Urebeté explica que o fogo estava do outro lado do rio, e conseguiu atravessar a água pelo vento forte, além de redemoinhos de vento que carregaram as faíscas de folhas secas. As casas de palha durante o tempo seco e ventos fortes se tornam alvos fáceis para a proliferação do incêndio, que podem ser muito mais perigosos se atingem a rede elétrica. O velho cacique diz que neste ano o número de queimadas na região é muito maior.
Mãe e filho ao lado da casa onde moravam, e que foi destruída pelas queimadas que atingiram a aldeia Rainha da Paz, Território Indígena São Marcos. Mato Grosso, Brasil.As panelas ainda estavam sobre o fogão quando o fogo alcançou e destruiu as ocas onde moravam famílias indígenas da etnia Xavante, na aldeia Rainha da Paz, Território Indígena São Marcos. Mato Grosso, Brasil.
O cenário brasileiro é tão grave, que não é preciso muito esforço para encontrar aldeias atingidas pelos incêndios, tanto em 2019, quanto em 2020. No território indígena Areões, distante duzentos quilômetros de São Marcos, a população carece do mais básico e elementar para uma sobrevivência digna. Sem qualquer amparo que garanta acesso às políticas públicas, dependem de organizações de proteção cada vez mais sucateadas pelos recentes cortes de verbas do Governo Federal. Não bastasse todo o sofrimento da própria condição de existência, a comunidade viu a roça que alimentaria as famílias sucumbir às chamas, que quase atingiram a escola improvisada, na antiga capela, cuja última aula data de junho de 2019.
Cacique Xavante, da aldeia Pequi, no Território Indígena Areões, mostra a roça destruída pelas chamas. Segundo ele, o fogo iniciou em uma fazenda e chegou até a aldeia. Mato Grosso, Brasil.Crianças Xavantes com suas roupas coloridas contrastam com as cinzas deixadas pela queimada que atingiu a aldeia Pequi, no Território Indígena Areões. Mato Grosso, Brasil.
Adentrando a região amazônica, no território indígena de Parabubure, uma ativista recolheu alguns donativos na cidade para distribuir na aldeia São Gabriel, também atingida pelos incêndios em 2019. O cacique e sua família lamentam suas casas destruídas pelo fogo. O sobrinho teve os braços queimados ao tentar salvar objetos das chamas, dentro de casa. A capela construída recentemente também não resistiu, assim como a roça, tudo foi consumido pelas chamas. Não sobraram ferramentas de trabalho, nem sequer a caixa dágua, e o acesso à água passou a se resumir a alguns galões para atender aos cerca de 80 moradores. Os xavantes ainda salvaram um porco selvagem que escapou da floresta com algumas queimaduras.
Em seus 80 anos de vida, o cacique Wedewua’ explica que nunca havia visto algo parecido. O incêndio iniciou pelo fogo espalhado de uma fazenda através do vento e entrou na aldeia por um redemoinho de faíscas de folhas secas, que atingiu aleatoriamente algumas casas enquanto poupou outras. Para os Xavantes, um redemoinho é sinal de mau agouro, um espírito ruim. Wedewua’ implora por ajuda para conseguir recuperar tudo que perdeu, enquanto as mulheres da aldeia dividem as pequenas doações arrecadadas. Para eles, a solução da situação passa pelo fortalecimento dos direitos indígenas pela terra e a proteção contra discursos presidenciais que inflamam os conflitos no campo.
A catástrofe brasileira é composta por uma sucessão de tragédias que atravessam a política, as leis, os direitos básicos e compõem o maior drama civilizatório imposto aos brasileiros nos últimos 30 anos. O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e apresentado neste mês de outubro de 2020, reforça o retrato de uma realidade extremamente perversa e preocupante do Brasil indígena no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro na Presidência do país. Os dados de 2019 revelam que os povos e seus territórios tradicionais estão sendo, explicitamente, usurpados.
*Título do artigo que compõe o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019.