Chapada dos Veadeiros: Um paraíso em busca da redenção

Sob chamas criminosas, brigadistas lutam pelo fim dos incêndios, enquanto faltam serviços básicos à população de Alto Paraíso de Goiás. Fogo já consumiu mais de 23 mil hectares de vegetação no Parque Nacional

Texto e fotos: Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski
*Uma reportagem da Mídia Ninja e A Lente

Um cenário deslumbrante se desenha na paisagem vista dos dois lados da estrada, na chegada à Alto Paraíso de Goiás, no coração da Chapada dos Veadeiros. No horizonte, montanhas se alçam ao céu, enfileiradas, como uma frequência cardíaca da própria terra, que corre perigo. Uma coluna de fumaça se ergue no fim de onde a vista alcança, parece vir por trás da serra. Com o cair da noite, a luz vermelha das chamas acende o céu e deixa todos em alerta.

Queima Alto Paraíso, queima São Jorge [distrito], queima Cavalcante, queima Colinas do Sul, Teresina, São João d’ Aliança…

A brigadista Giselle Amorim Cavati se refere ao avanço das queimadas nas últimas semanas na Chapada dos Veadeiros, após um grande incêndio iniciar no Vale da Lua, um dos atrativos turísticos mais visitados. Ela, que é voluntária da Brigada Rede Contra Fogo, afirma categoricamente que os incêndios não são naturais, mas criminosos. Até esta terça-feira (28), mais de 40 mil hectares da vegetação já haviam sido queimados. Deste total, 23,6 mil hectares estão dentro do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

Giselle Amorim Cavati

No Brasil, o fogo natural no cerrado é provocado por raios em tempestades, geralmente no período das chuvas. Para não ser criminoso, é preciso que a queima prescrita tenha sido liberada pelos órgãos responsáveis, que ocorre em períodos determinados, fora da estiagem. Segundo o Coordenador de Prevenção e Combate a Incêndios do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), João Paulo Morita, nenhuma liberação havia sido feita para o atual período, o que torna o fogo criminoso uma realidade latente, seja doloso ou culposo.

João Paulo Morita

“Nesse momento, todos os incêndios são criminosos”, afirma Giselle.

Não é a primeira vez que a apreensão toma conta da região. Em 2017, um incêndio de grandes proporções assolou Chapada dos Veadeiros. Na ocasião, 65 mil hectares de terra foram devastadas pelo fogo, cerca de 25% da área total do Parque Nacional, que se dedica à proteção integral da natureza na região.

A tragédia foi logo após um decreto de ampliação da área do Parque ser sancionado, aumentando de 65 mil para 240 mil hectares de território contínuo, decisão que levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a manter o título de Patrimônio Natural da Humanidade, que estava ameaçado. Segundo reportagem publicada pela National Geographic, em 2018, a ampliação foi apontada por ambientalistas como o verdadeiro motivo do desastre.

Neste ano, o deputado federal Delegado Waldir (PSL/GO) protocolou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 338/2021 com a intenção de anular o decreto de ampliação do parque, alegando que “o aumento desmedido de seu tamanho prejudica os agricultores da região”, PDL que segue em tramitação. Paralelamente, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em agosto, manteve a ampliação territorial em 240 mil hectares, uma vez que o Parque, no passado, já chegou a ter 625 mil hectares de área contínua, gradativamente ocupada pelo gado e pela agricultura de grande escala.

COMBATE ÀS CHAMAS

Para combater os incêndios, desde 2017 brigadas voluntárias se organizam nos municípios atingidos, atuando em cooperação com brigadistas do ICMBio, Ibama e Corpo de Bombeiros. Todos recebem instruções do centro de comando, que coordena as operações e distribui os esquadrões e aeronaves pela vasta região montanhosa, com o objetivo de extinguir o fogo.

A mística de Alto Paraíso dá lugar a uma verdadeira operação de guerra montada para impedir o avanço dos incêndios. Não há dia ou noite, a missão dos brigadistas é estar em alerta constante. É possível perceber que a cidade, com alto fluxo turístico, passa a abrigar também a dinâmica do fogo: são aeronaves, caminhões, veículos oficiais e de brigadas voluntárias que operam constantemente na região. 

São mais de duzentos profissionais envolvidos na operação e três aeronaves. Somente nas últimas duas semanas foram mais de 700 lançamentos, somando quase dois milhões de litros de água para controlar as chamas, de acordo com a assessoria do ICMBio. As aeronaves levantam voo logo cedo e só param no início da noite, quando o trabalho se concentra em terra, com os brigadistas.

Entre os dias 20 a 24 de setembro, quando a reportagem acompanhou de perto a situação, a região enfrentava um cenário extremo com fatores que tornam os incêndios florestais mais perigosos, danosos e de difícil controle. Com a redução da umidade relativa do ar, a elevação das temperaturas, associadas ao vento e à vegetação seca, as condições se tornam favoráveis à propagação do fogo. É o chamado “fator 30, 30, 30”, ou seja, temperaturas acima de 30º, umidade relativa do ar abaixo de 30% e ventos com velocidades acima de 30 km/h. 

“As condições climáticas são desfavoráveis, ou seja, qualquer foco de incêndio que aconteça nessa situação toma uma proporção de guerra”, relata Giselle ao mencionar a importância do trabalho conjunto entre as brigadas federais (PrevFogo, ICBMBio), o corpo de bombeiros e as brigadas voluntárias Rede Contra Fogo, São Jorge e a Brivac.

Na última semana, o trajeto entre Alto Paraíso e a cidade de Cavalcante concentrava a maior quantidade de focos de incêndio e foi onde a reportagem encontrou um rastro de destruição que atravessava a rodovia GO-118.

Além do poço encantado, a região da ponte de pedra, Encontro das Águas e da cachoeira do Segredo também apresentavam focos ativos. 

Trilha de acesso à Cachoeira do Segredo após passagem dos incêndios

BRIGADISTAS E CORTES

Contrastando com a água esverdeada do Poço das Esmeraldas, um esquadrão do ICMBio e um dos funcionários da fazenda Volta da Serra, Antônio Nilsemar de Sousa, abastecem as bombas costais para seguir no rescaldo de um incêndio que havia cortado a noite na fazenda que abriga o atrativo turístico.

Antônio Nilsemar de Sousa

Jerry Masckett, líder da equipe, conta que o trabalho de brigadista é sua paixão, mesmo diante de todos os riscos. “À noite, a gente passa em lugares que de dia dá medo” conta, sobre as incursões do esquadrão em penhascos e desfiladeiros da Chapada dos Veadeiros. Enquanto está em campo, Jerry relata que sua mãe fica preocupada em casa, em busca de notícias por meio dos telejornais. 

Jerry Masckett

“Eu amo essa profissão! Aliás, ainda não é considerada profissão aqui no Brasil”. 

A falta de regulamentação da atividade de brigadista florestal como profissão tem impacto direto na condição laboral. Foi constatado pela reportagem jornadas intensas de trabalho, baixa remuneração e ausência de direitos trabalhistas como adicional de insalubridade ou periculosidade. 

Os sucessivos cortes orçamentários do Ministério do Meio Ambiente pelo governo Bolsonaro, em especial a redução do orçamento do ICMBio e IBAMA, são determinantes para condição de precarização do trabalho e falta de investimento adequado em infraestrutura, sobretudo, na qualidade dos EPI´s, que, em muitos casos, não são os melhores. Durante as operações, o ICMBio contou com equipamentos de turbo sopro emprestados pelas brigadas voluntárias.

Para se ter uma ideia, o orçamento do Ministério do Meio Ambiente, neste ano, é de R $2,9 bilhões, o menor patamar da série histórica de um levantamento feito pela Associação Contas Abertas com dados desde 2010.  Esse montante é 9% inferior, em termos reais aos recursos orçados no ano passado, como mostra a tabela do SIAFI. Somente o ICMBio teve um orçamento 30% menor neste ano em comparação ao ano passado.

A falta de investimento é um problema grave e coloca em risco a vida de dezenas de trabalhadores, que são lançados à própria sorte, numa operação arriscada diante de todos os desafios impostos pelo fogo e pelas características do terreno acidentado e montanhoso.

É perceptível a garra e o cansaço nos olhos de cada um. No final de cada jornada, um aprendizado. Nas mazelas deixadas pelo governo federal, o fortalecimento e o apoio entre as equipes passa a ser um símbolo de resistência.

SITUAÇÃO DE RISCO

Ao acompanhar as notícias compartilhadas nos grupos de whatsapp sobre a situação dos incêndios, Piquerobi Freitas Pereira de Sousa, deixa explícita sua ansiedade em voltar a campo. Ele, que é biólogo e brigadista voluntário, está afastado há duas semanas, após sofrer queimaduras decorrentes de um combate na região do Vale da Lua. Na ocasião, cerca de cem turistas que estavam no local chegaram a ficar cercados pelo fogo e tiveram que ser resgatados.

Vale da Lua após os incêndios

Durante uma incursão de sua equipe, a Brigada de São Jorge, Piquerobi caiu em uma grota tomada pelas chamas. O turbo sopro que levava, carregado de combustível, havia prendido seu corpo junto à vegetação. Após o derretimento de uma das alças, ele conseguiu se desvencilhar. Com a ajuda de um colega, resgataram o equipamento e retornaram mais de uma hora de caminhada, até o veículo que o levaria para atendimento médico.

“Eu cheguei a chorar sem lágrimas. Eu ainda não tinha visto, a hora que tirei a calça eu vi as bolhas. Eu tava completo [de EPI], se não fosse isso seria complicado. Se eu tivesse com uma calça jeans ou outra, eu teria entrado em chamas”, contou.

Piquerobi teve queimaduras de segundo grau na coxa, além de ter o braço, cotovelo e rosto atingidos, mesmo estando equipado com os EPIs. Esse caso não é isolado, assim como ele, outros brigadistas também se acidentaram e precisaram recorrer a atendimento médico na cidade. Um bombeiro militar teve o olho perfurado por um galho e uma brigadista do ICMBio também precisou ser conduzida ao hospital municipal.

Ela fraturou a bacia e teve três convulsões após uma queda de três metros de altura, durante um combate. Foi resgatada pelos companheiros de brigada, que improvisaram uma maca com as próprias gandolas e a carregaram por quase uma hora antes de ser transferida de avião para Goiânia, onde recebeu os cuidados necessários. Segundo informações obtidas pela reportagem, o hospital municipal de Alto Paraíso de Goiás possui poucos médicos e nenhum ortopedista. “Nem sabão para lavar as mãos em meio à pandemia tem”, relata Piquerobi ao falar sobre a estrutura do hospital.

A precariedade na saúde pública é um reflexo da falta de investimento nos serviços básicos para a população. Mesmo com um turismo pujante, gerador de riquezas, Alto Paraíso sofre com a falta de recursos. A arrecadação é prejudicada pela inexistência de tributação sobre as atividades dos atrativos turísticos que estão concentrados em propriedades privadas.

Segundo o artigo “Impactos da atividade turística à economia municipal de Alto Paraíso de Goiás”, publicado por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Goiás, além de não haver uma contrapartida em impostos ou taxas por parte dos proprietários dos atrativos, a prefeitura da cidade tem gastos quanto à manutenção, mesmo que grande parte seja em áreas particulares. Ainda segundo o artigo, a otimização da arrecadação tributária, impulsionada pelo turismo, poderia ser pensada como uma espécie de “retorno” dos impactos espaciais relacionados à atividade na região (produção de lixo, aumento do fluxo de pessoas, dentre outros) e no aumento da arrecadação para o investimento em serviços para a comunidade.

Não bastasse a dificuldade no acesso à saúde pública decorrente dos acidentes, um surto de covid-19 iniciou no alojamento onde estão abrigadas as equipes federais, passando a exigir cuidados redobrados. Até o fechamento da reportagem, cerca de 28 brigadistas haviam sido infectados, mas nem todos haviam sido testados.

UMA JORNADA PARA A RESILIÊNCIA

É notório que o mundo começa a enfrentar os efeitos do aquecimento global e das mudanças climáticas, que são sentidas no Brasil. Porém a existência desses efeitos não pode ser vista como um determinismo natural. Mesmo que os incêndios florestais sejam categorizados como desastres naturais pela Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (COBRADE), a condição criminosa de sua ocorrência no Brasil está diretamente associada à ação humana, especialmente em zonas de conflitos de terras, demandando o fortalecimento das políticas públicas de prevenção, fiscalização e punição. Mais de 95% dos incêndios florestais têm origem antrópica.

Em Alto Paraíso, dos focos identificados pelas equipes de combate ao fogo, cinco resultaram em inquéritos abertos na Polícia Civil da cidade. Segundo depoimento da delegada responsável, Bárbara Buttini, quatro dos casos tiveram reconhecimento de autoria, sendo dois dolosos e dois culposos. A situação levou a Prefeitura de Alto Paraíso de Goiás a decretar estado de emergência ambiental.

Uma demanda levantada durante a reportagem trata da recomposição dos orçamentos públicos do Ministério do Meio Ambiente e a garantia de que as políticas públicas não sejam reféns dos interesses econômicos do grande agronegócio. Isso também se estende ao âmbito dos governos estadual e municipais, que não podem se tornar instrumentos de legitimação dos crimes cometidos. Em julho deste ano, o Ministério da Justiça e Segurança Pública  lançou um plano que prevê a atuação de quase seis mil profissionais em 11 estados do Cerrado, Pantanal e Amazônia para auxiliarem também na repressão e investigação de crimes ambientais.  

Uma prática necessária, segundo o coronel BM e secretário executivo do Comitê do Fogo, Paulo André Barroso, é a adoção de um protocolo de prevenção aos incêndios florestais em áreas rurais, orientado pelo guia de requisitos e procedimentos básicos para combate a incêndio florestal, publicado pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), em agosto deste ano.

Esta Prática Recomendada especifica os requisitos e procedimentos básicos para o combate a incêndios em áreas florestais, para proteger a vida e o patrimônio, bem como reduzir as consequências sociais e os danos ao meio ambiente. “Da mesma forma que um shopping center precisa contar com hidrantes, extintores, sinalização, saídas de emergência e bombeiro civil, a mesma lógica precisa ser aplicada à área rural”, afirmou. No caso de atrativos turísticos que geram alto fluxo de pessoas, essa metodologia se mostra imprescindível.

De acordo com pesquisas relatadas em um artigo de Johan Kieft, especialista em Ecossistemas e Incêndios Florestais do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), e Nico Oosthuizen, diretor de mercados do Working on Fire, “os incêndios são cada vez mais responsáveis ​​pela degradação florestal nos trópicos devido à expansão da agricultura dependente de incêndios, mudanças no uso da terra, práticas de exploração e secas severas” e, por isso, precisam ser controlados.

No que tange ao município de Alto Paraíso, há necessidade de fortalecimento orçamentário para a promoção de políticas ambientais pela secretaria de meio ambiente. Uma das possibilidades apontadas por organizações é o recolhimento de impostos de atrativos turísticos em propriedades privadas, que consequentemente se beneficiam da conservação, atraindo mais turistas, uma vez que o fogo é prejudicial à atividade.

Mais uma estratégia que colabora com a prevenção aos incêndios é o manejo integrado do fogo (MIF), com a queima controlada de matéria combustível durante o período chuvoso, para que na chegada da estiagem não haja tanto material inflamável, como o capim gordura, que possui alto teor calórico e amplia a propagação das chamas.

Quanto aos recursos emergenciais disponíveis, o melhor a ser feito, segundo ativistas locais, é o apoio aos profissionais e instituições que estão na linha de frente, inclusive por meio de doações. Além da Rede Contra Fogo, Brigada de São Jorge e Brivac, existem outras organizações como a Associação dos Amigos do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (AVE), o Instituto Biorregional do Cerrado (IBC) e associações de coletores de sementes, todas bastante atuantes na região.

Os sucessivos incêndios têm obrigado o cerrado a ter resiliência para se regenerar, porém é muito provável que algumas espécies mais sensíveis ao fogo sejam extintas. A proteção do bioma depende da integração de forças em cooperação e de sólidas políticas públicas de Estado, além de recursos. O parque abriga hoje 32 espécies diferentes da fauna e 17 da flora ameaçadas de extinção, que poderão desaparecer a qualquer momento caso não haja a garantia de proteção integral da unidade de conservação. 

Em meio à severa estiagem, o maior atrativo aguardado por todos é a chegada da chuva, que começou a cair na última sexta-feira (24). Caso 2021 repita o mesmo roteiro de 2017, muitos fazendeiros aproveitarão esta chuva para prosseguir queimando o pasto, dando sequência aos incêndios pelo mês de outubro, quando voltam a se intensificar.

A redenção neste ano poderá depender do início do tempo das águas, a partir de novembro. Até lá, os brigadistas seguem na difícil jornada de luta pela vida no cerrado. Em um indício de esperança, ao final do último dia de combate que a reportagem acompanhou, as equipes foram surpreendidas com uma notícia alvissareira. “Eu acabei de sair do fogo agora, cansado, mas eu recebi uma notícia maravilhosa, eu vou ser pai!” contou emocionado o brigadista do Ibama, Rolan Furtado, que foi aplaudido e parabenizado pelos colegas.  

Rolan Furtado

Assim, a vida insiste em pulsar, em um presságio dos tempos que virão.

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