Famílias atingidas por usina na Amazônia mato-grossense esperam decisão judicial por indenização de suas terras inundadas no Rio Teles Pires. Vegetação alagada pelo empreendimento apodrece dentro da água impactando a fauna, a flora e a vida da comunidade.
Texto: Ahmad Jarrah | Fotografias: Ahmad Jarrah | Drone: Bruna Obadowski
Armando atravessa dezoito quilômetros de estrada para levar um peixe na casa do seu irmão, Daniel. O caminho, outrora pacato, agora anda bem agitado. O trânsito de carros e caminhões, debaixo do sol quente de agosto, suspende a poeira que encontra repouso sobre as prateleiras dos pequenos comércios da Agrovila, núcleo da Gleba Mercedes V, um assentamento da reforma agrária às margens do Rio Teles Pires, no município de Sinop, em Mato Grosso.
Há dez anos, os irmãos Schlindwein precisariam somente ir até o quintal para se encontrarem. Suas “parcelas”, como são conhecidos os lotes na região, são vizinhas e dividem o mesmo fundo, cortado por um pequeno córrego, o Matrinxã.
Depois da instalação da Usina Hidrelétrica Sinop, a região onde cerca de 500 famílias viviam da agricultura familiar e da sustentabilidade proporcionada pelo Rio Teles Pires foi inundada, deixando 214 famílias debaixo d’água. A pequena vila passou a ter movimento intenso. As famílias atingidas alegaram terem sido roubadas pelo empreendimento ao receberem uma indenização 300% inferior ao valor de mercado.
Suas terras foram compradas pelo consórcio empresarial Sinop Energia, a Companhia Energética Sinop (CES) – formada por uma multinacional francesa do setor energético, Électricité de France (EDF), Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. (Eletronorte) e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf).
Não apenas o prejuízo de terem suas terras arrematadas por uma bagatela, Armando e Daniel Schlindwein também tiveram suas vidas divididas. Com a inundação do lago da usina, o córrego Matrinxã aumentou em quase 5.000% seu tamanho, passando de 8 para 400 metros de largura e dez metros de profundidade.
Ao cortar um capim final de tarde para alimentar o gado em sua propriedade com ajuda de sua esposa, Daniel relembra que antes “só tinha uma pequena ponte por cima de um riozinho pequeno, o sítio dele de um lado desse riozinho e eu aqui do outro lado. Aí chega o lago e divide nós”. Com a reconfiguração viária da gleba, os irmãos precisam agora dar uma volta de 18 quilômetros para se encontrar. Ele conta que tratar o gado também ficou mais difícil, pela dificuldade no acesso a água que aumentou.
Este fato é consequência dos impactos ambientais provocados pela UHE Sinop ao não levar em conta vários requisitos legais para instalação de empreendimentos deste porte, como a supressão da vegetação.
São 34 mil hectares inundados pela usina, 15 mil hectares de floresta não foram suprimidos e ficaram submersos. Dentro da gleba, foram 5.900 hectares atingidos. São milhares de árvores apodrecendo dentro do rio, gerando gases de efeito estufa e degradando a qualidade da água que passa inclusive a provocar doenças e grande mortandade de peixes.
Para efeitos de comparação, a área inundada é equivalente a 8.200 campos de futebol. Entre as 214 famílias atingidas, teve quem perdeu tudo e quem perdeu parcelas da terra que variaram de 1% a 99%. A indenização paga pelo empreendimento foi de 3.900 reais por hectare.
“O meu era 82 hectares e sobrou 51. Me chamaram no escritório e me deram cinco dias de prazo pra eu dizer se aceito ou receberei depósito em juízo”, recorda Armando.
De acordo com ele, a conversa na época é de que o depósito em juízo pagaria um valor ainda menor e com muito tempo de atraso. “Então a gente foi coagido. Mas na verdade fomos roubados. É essa a palavra. Literalmente é roubado!” manifesta indignado.
Armando ainda comenta que sofreu um Interdito Proibitório, emitido pela justiça após solicitação do consórcio. Alega que foi perseguido apenas por discordar do valor da indenização e se manifestar junto com o Mab (Movimento dos Atingidos por Barragens). Tanto Armando, quando os militantes do Mab foram proibidos de se aproximar dos canteiros de obras da usina.
Entre 2017 e 2018, foram feitas três perícias pelo Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra), pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Justiça Federal. Todas apontam que os valores pagos às famílias era muito inferior à realidade de mercado.
Ao todo, foram feitas quatro perícias. Um laudo do Incra apontou, em agosto de 2017, que o preço médio do hectare na região era de doze mil reais, 300% maior do que o pago pelo consórcio. O MPF promoveu uma segunda perícia, em fevereiro de 2018, que também constatou que os valores pagos pela CES estavam abaixo dos preços reais dos lotes.
Em 2018, o MPF abriu uma Ação Civil Pública para denunciar as diversas irregularidades na definição das indenizações. Com o processo instaurado na Justiça Federal, foi realizada uma terceira perícia, entre setembro e outubro de 2018 que determinou que o valor médio das terras atingidas pela UHE Sinop é superior a 23 mil reais por hectare.
No entanto, a terceira perícia foi impugnada sob alegação de imparcialidade do perito. As famílias afirmam que isso se deve à pressão jurídica do consórcio. A quarta e última perícia tinha prazo para ser entregue em junho de 2022, foi prorrogado para julho, agosto, e já adentramos setembro sem que ela tenha sido publicada”, afirma Jefferson Nascimento, um dos militantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB/MT).
Essa morosidade tem afetado o cotidiano das famílias, que se sentem injustiçadas e ainda lutam para se recuperarem do prejuízo. A expectativa é que o valor divulgado na nova perícia esteja condizente com a realidade de mercado.
Estimativa do MAB aponta que o consórcio deixou de pagar cerca de 120 milhões de reais em indenizações.
Inclusive outros compromissos referentes à instalação da usina, como a construção de um ginásio poliesportivo para atender as comunidades, também não foi cumprido, apesar de ter sido utilizado para convencer as famílias.
Outra reclamação recorrente é a falta de acesso à água potável de qualidade. Nas terras mais altas onde foram deslocados os atingidos, não tem nascentes de água natural nem áreas de florestas, como havia nos locais onde moravam antes da usina hidrelétrica.
O consórcio de Sinop alega que construiu alguns poços artesianos para abastecimento de água, entretanto eles funcionam com bombas elétricas, mas cuja conta de luz depende dos moradores.
Mesmo assim, a reportagem ouviu diversos relatos, como do sr. Eurípedes, um dos pioneiros da comunidade. Ele alega que ele mesmo teve que custear seu próprio poço e o empreendimento não ofereceu nenhuma ajuda
“Fui eu que paguei. Se dependesse deles (do consórcio) estava sem água até hoje”, relembra Eurípedes, contando que na época o consórcio alegou que ele teria recebido mais do que outras famílias. A dificuldade tem se manifestado até em atividades cotidianas, como a alimentação.
Fui eu que paguei. Se dependesse deles (do consórcio) estava sem água até hoje!”
Seu Eurípedes
Outra família atingida, Grandão e Jacinta narram como era a vida no sítio que foi 97% alagado pela usina. “Lá era mais tranquilo, tudo verde. Tinha água à vontade, aqui não tem água não. Só tem um pocinho aqui só. Eu tinha três nascentes de água no meu sítio lá, o ano inteiro tudo verde” destaca Grandão.
Julgando não valer a pena permanecer apenas com os 3% que não havia sido alagado dos 80 hectares de sua chácara, Grandão preferiu adquirir outra área na região, para onde se mudou e vive até hoje, reconstituindo novamente sua vida.
Dona Jacinta comenta saudosa que “a comunidade como era não existe mais. E isso foi esse empreendimento que causou, essa desunião e esse espalhamento das pessoas. Foi a usina, com certeza. Porque se não fosse a usina nós estávamos lá até hoje. Já ia fazer vinte anos”.
Outra indignação das famílias é de que o consórcio havia prometido quitar o título das terras adquiridas, o que não foi feito. Além de perderem as terras as famílias ainda ficaram endividadas com o título, em alguns casos parcelado por mais de vinte anos.
“Eles falaram que o título ia ser da conta deles. Eles não pagaram foi nada. Agora veio o título pra eu pagar, dezessete mil (reais). Tô pagando o banco, parcela anual. Como é que eu estou pagando uma coisa que não é minha? Não tem lógica, né? Se eu estou pagando então é minha!” reclama Grandão.
Sobre a expectativa pelo resultado da última perícia, Grandão não hesita. “A esperança é recebermos a diferença real (de valor da indenização). Porque devolver, eles não vão devolver nossa vida, que nós tinha”, lamenta.
Odarílio Gomes, outro morador precursor da gleba resume a situação de espera que as famílias vivem e se ampara na fé.
O nosso desgosto é essa empresa. Então nós estamos pedindo a Deus que eles botem a mão na consciência e cheguem no preço justo da terra, isso que a gente espera”.
Odarílio Gomes, assentado da Gleba Mercedes V
DEGRADAÇÃO AMBIENTAL E ESPÉCIES AMEAÇADAS
Com muita vegetação ficou dentro do lago, durante o período em que o volume de água está mais alto, aumentam os níveis de gases efeito estufa, como o metano, além da piora da qualidade da água para ictiofauna e consumo humano.
Já o período de seca, essa vegetação fica fora da água e ultimamente tem sido foco de incêndios florestais, cuja ocorrência cresceu nos últimos anos, de acordo com Jefferson Nascimento. Esta situação das queimadas está sendo tratada em uma ação civil movida pela Associação de Educação, Cultura e Agroecologia Zumbis.
“Então a gente tem feito que de fato a Sema deveria fazer, que é o que a gente chama de um monitoramento independente e participativo junto com as famílias. É essa coleta de informações e essas denúncias todas que as famílias tem passado”, relata Nascimento sobre a atuação do MAB.
Outra situação impactante da presença da UHE Sinop é a alta mortalidade de peixes provocada pela usina. Nos últimos anos foram sucessivas ocorrências que dizimaram toneladas de peixes de diversas espécies no Rio Teles Pires. A Lente registrou uma dessas catástrofes ambientais na reportagem “Um rio no leito de morte”.
“As coisa mais linda que nós tinha aqui é o peixe matrinxã que dava no Teles Pires e eles desapareceram. Não pega mais uma matrinchã no rio, é raro” lamenta Mauro Freese, mais um dos atingidos pela Usina que teve sua terra parcialmente alagada.
Mais um grave impacto ambiental provocado pela UHE Sinop é a inundação de locais que são habitat natural de espécies ameaçadas de extinção. O zogue-zogue (plecturocebus grovesi) é uma das quatro espécies de primatas no Brasil mais ameaçadas do mundo, dentre um total de 25 espécies.
O zogue-zogue é a única espécie de Mato Grosso na lista de mais ameaçadas do mundo. O primata tem por habitat a amazônia mato-grossense, na faixa entre Sinop e Alta Floresta, justamente na zona de impacto da usina.
Em campo, dentro da propriedade de Armando, durante a entrevista a equipe de reportagem flagrou no topo de uma alta árvore um belo exemplar do primata. Pesquisadores instalaram câmeras para monitorar os hábitos e acompanhar a preservação da espécie.
“Você sente que diminuiu a quantidade de animais. Não é só cotia, cobra e anta que faz parte da fauna. As abelhas sumiram. Eu tinha um apiário. Não foi só as minhas que sumiram, todas sumiram. As queimadas destruiram tudo” aponta Mauro Freese, ressaltando a importância das abelhas para a manutenção e equilíbrio de todo o ecossistema.
O Teles Pires é considerado o rio mais impactado por grandes usinas hidrelétricas na Amazônia. Além da UHE Sinop, a usina de Colíder também está com licenciamento de operação concedidos pela Sema.
As hidrelétricas de Teles Pires, UHE Foz dos Apiacás e a UHE São Manoel estão com a licença de operação concedidas pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA). As cinco usinas juntas contribuem com as drásticas alterações do nível das águas do rio Teles Pires e com o aumento das violações socioambientais e dos direitos humanos na região. Além das quatro hidrelétricas construídas, ainda estão planejadas para o rio Teles Pires outras duas grandes usinas: UHE Salto Apiacás e a UHE Magessi.