Ministros de Bolsonaro participaram de colheita ilegal de soja em área indígena interditada por desmatamento
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Por João Peres e Tatiana Merlino/O Joio e O Trigo Foto de capa: Tchélo Figueiredo/Secom-MT/ Festa da colheita.
Um homem branco vestindo um cocar amarelo e uma mulher branca usando um cinto indígena dançam, em roda, com indígenas da etnia Pareci. É 13 de fevereiro de 2019 e eles participam da festa da colheita, na Terra Indígena Utiariti, na cidade de Campo Novo dos Parecis, situada a 397 quilômetros de Cuiabá, em Mato Grosso. O homem é o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em sua primeira viagem à Amazônia desde o início do governo de Jair Bolsonaro. E a mulher é a então ministra da Agricultura, Tereza Cristina.
Junto com eles, estavam o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, e o então diretor de Proteção Ambiental (Dipro) do Instituto Brasileiro de Recursos Renováveis (Ibama), major Olivaldi Azevedo. O evento reuniu indígenas de setenta aldeias de cinco regiões do país. Mas tanto a colheita de soja quanto a participação dos funcionários na festa foram ilegais.
Pouco menos de um ano antes do evento, em maio de 2018, cinco áreas das terras indígenas das etnias Pareci, Manoki e Nambikwara, haviam sido embargadas pelo Ibama. Os indígenas foram multados por desmatamento sem licenciamento ambiental, por plantio de soja transgênica dentro da terra indígena e por arrendamento de terras para não indígenas. O órgão aplicou ainda uma multa de R$ 2,7 milhões contra produtores rurais e associações indígenas.
Na festa da colheita, portanto, a área seguia interditada. Os indígenas descumpriram o embargo. Os ministros, o governador e o próprio funcionário do Ibama não respeitaram a decisão do órgão federal. Com isso, de acordo com o Artigo 81 do Decreto 6.514, podem ser autuados por não cumprirem o embargo e ainda ser multados por prevaricação- ou seja, por terem deixado de cumprir com os deveres de um servidor público.
“Nessa condição, avalio que pode estar caracterizada improbidade administrativa”, afirma Suely Araújo, que era presidente do Ibama à época em que a multa e os embargos foram aplicados. No entanto, afirma, “esta análise cabe ao Ministério Público Federal e ao Judiciário, diz a especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima”.
Para conhecer os projetos de produção de soja nas terras indígenas das etnias Pareci, Manoki e Nambikwara, em agosto de 2022, a equipe do Joio dirigiu mais de 2 mil quilômetros e circulou por cinco terras indígenas das três etnias, no Mato Grosso, onde entrevistou cerca de 20 pessoas.
A investigação resulta na série de reportagens “O feroz e o encantado”, que publicaremos hoje e nas próximas semanas. Nos textos, iremos contar o histórico da produção de monocultura, as tentativas de licenciamento da área, os aspectos positivos e negativos da lavoura, a relação com Ibama, Funai e MPF. Essa série integra o projeto “Entre a soja e o Cerrado”, que investiga o avanço do agronegócio em terras indígenas.
Alerta de área embargada
Dias antes da realização da festa, a então superintendente do Ibama em Mato Grosso, Lívia Karina Passos Martins, recebeu um convite do governador para participar do encontro. Em resposta, a servidora ambiental enviou um ofício à presidência do Ibama e à diretoria de proteção ambiental (Dipro), responsável por fiscalizações ambientais e que então tinha à frente o major Olivaldi Azevedo.
No texto, ela alertou para o fato de que a terra indígena da festa era a mesma que havia sido embargada e fiscalizada pelo próprio Dipro, em 2018 — numa postura contrária à do chefe Ricardo Salles. Afirmou desconhecer qualquer decisão judicial que teria suspendido a decisão. Assim, já que a área seguia impedida “os grãos a serem colhidos neste 1º Encontro teriam sido produzidos sobre área objeto de embargo, infringindo o Decreto 6514/2008 por descumprimento”, disse, no despacho.
A servidora pediu que se verifique a existência de alguma ação judicial que tenha suspendido a ação e, em caso negativo, solicita orientação quanto aos procedimentos administrativos a serem tomados, inclusive quanto aos grãos colhidos ilegalmente. E, por fim, sugeriu que se analise a possibilidade de comunicar ao Ministério Público Federal acerca do fato, para que sejam tomadas as devidas providências. O mesmo decreto 6514 proíbe adquirir e intermediar o que foi produzido em área embargada.
Canetada
A servidora não teve retorno. Sete meses depois, em 26 setembro, o então presidente do Ibama, Eduardo Fortunato Bim, desembargou todas as áreas que haviam sido multadas. A reportagem do Joio conversou com servidores do Ibama que falaram que a medida foi vista como uma “canetada” para acomodar os interesses de Bolsonaro, que sempre apresentou os Pareci como exemplo de etnia. Desde o início do governo, a área foi alvo de pressão dos ruralistas. Durante sua gestão, Bim esteve envolvido em irregularidades e chegou a ser afastado do cargo durante investigações da PF que apuraram supostas ações do Ibama que favoreceram a extração ilegal e exportação de madeira nacional.
Nove meses após a festa, e, os indígenas assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ibama, a Funai e o Ministério Público Federal (MPF), para produção agrícola nas terras indígenas Rio Formoso, Pareci, Utiariti, Tirecatinga e Irantxe, em Mato Grosso, sem a participação de não-indígenas e sem transgênicos.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, em dezembro passado, o Joio solicitou ao Ibama informações sobre quais foram as ações fiscalizatórias para o monitoramento da área que foi embargada e sobre o destino da soja produzida neste período. A resposta foi: “Não consta na base de dados a realização de novas ações fiscalizatórias nas referidas áreas após o desembargo.”
Perguntamos ao Ibama por qual motivo o então diretor do Dipro, Olivaldi Azevedo, participou da festa da colheita, se sabia que a área estava embargada. Também perguntamos se o órgão acionou o MPF após o despacho da superintendente do Mato Grosso e se houve um acompanhamento do destino da soja colhida ilegalmente. Por meio de sua assessoria, o Ibama disse que “não foi localizado nenhum comunicado direcionado ao MPF sobre o assunto mencionado” e que “a presença no evento foi articulada por gestores do Ministério do Meio Ambiente (MMA) que integraram a gestão anterior.” O Ibama não respondeu à pergunta sobre a presença de Olivaldi na festa, mas disse que não houve participação de nenhum servidor de carreira do Ibama”. O diretor do Dipro, que antes de assumir o cargo, atuava como subcomandante da Polícia Militar Ambiental de São José do Rio Preto (SP), não era servidor de carreira do Ibama.
Em abril de 2020, Olivaldi foi exonerado após uma operação contra garimpos no Pará. De acordo com servidores do Ibama, Olivaldi criava dificuldades em ações de fiscalização. O major assumiu o cargo em janeiro de 2019. Em junho de 2021, a Polícia Federal cumpriu um mandado de busca e apreensão na casa de Azevedo durante a Operação Akuanduba, que apurava exportação ilegal de madeira do Brasil para os Estados Unidos e a Europa.
De praxe
A conduta da direção do Ibama em relação aos Pareci se assemelha a outros casos envolvendo povos indígenas durante o governo Bolsonaro. Em março de 2022, o Joiorevelou que a área técnica do instituto foi atropelada pela direção ao contestar a transferência de licenciamento ambiental de uma ferrovia que afeta duas terras do povo Bororo, também em Mato Grosso.
Na ocasião, a Diretoria de Licenciamento resolveu atropelar sete pareceres técnicos que questionavam a capacidade da Secretaria Estadual de Meio Ambiente em analisar o pedido da Rumo, maior operadora logística do país, para a realização do empreendimento.
No caso dos Xavante, foi a área técnica da Funai que ficou a ver navios. A cúpula da fundação, dominada por militares e pelo delegado federal Marcelo Xavier, blindou o projeto conhecido como Agro Xavante, que o bolsonarismo também utilizou para fins de propaganda.
Documentos obtidos pelo Joio mostram que os funcionários da Coordenação Regional Xavante (CR Xavante) só tomaram conhecimento do início do projeto através de uma vistoria in loco realizada em dezembro de 2020. Depois disso, diversos questionamentos apresentados à Funai em Brasília foram ignorados.
A reportagem procurou os ex-ministros Ricardo Salles e Tereza Cristina, e o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, mas não houve retorno até o fechamento deste texto.