Trazido pelos colonizadores portugueses, o ritual religioso acontece anualmente em Guiratinga (MT) durante a semana santa
Texto: Adinael Jr.
Fotos e Vídeo: Ahmad Jarrah
Sete irmãs reúnem um grupo de fiéis, a maioria mulheres, e caminham envoltos por lençóis brancos pelas ruas e becos da cidade de Guiratinga, em Mato Grosso, realizando paradas em igrejas, cruzeiros e encruzilhadas, lugares em que se entoam preces e benditos para interceder pelas almas no purgatório. A procissão se encerra no cemitério, à meia-noite, sob a lua cheia iluminando os jazigos.
A Alimentação das Almas é um ritual religioso que surgiu provavelmente ao sul de Portugal, e foi trazida para o Brasil, mais especificamente para a região da Bahia, por colonizadores portugueses, de onde através das várias levas migratórias se espalhou para outras partes do território brasileiro, chegando inclusive a Guiratinga, palco do rito no Estado mato-grossense, onde sofreu algumas modificações, como por exemplo, o abandono da cruz e das velas, de que faziam uso os rezadores, e que persistem até hoje em certas regiões principalmente da Bahia.
Quanto ao nome, é correto chamarmos de “Alimentação das Almas” e não de “Lamentação das Almas” haja vista que a intenção dos praticantes não é lamentar a morte dos que já se “foram”, mas de ajudar as almas do purgatório, “alimentadas” pelas orações, para que através das penitências e orações possam descansar no reino do Céu. O rito apresenta elementos notadamente católicos, os cantos e as orações provêm sem dúvida do ritual católico, já que invocam sem paralelismo algum o Deus e os Santos católicos.
Dona Angelita Barbosa dos Santos, baiana de Brejinho de Oliveira, chegou a Mato Grosso em 1955, estabelecendo-se na região da Tapera, currutela de Guiratinga. Quando perguntada sobre o que é “Alimentação das Almas”, respondeu que “é uma tradição que começou depois do sofrimento de Jesus, por que ele morreu muito judiado, foi crucificado e sepultado”.
Não se sabe ao certo como essa tradição chegou a Guiratinga, as informações a respeito são muito vagas, e não sabem precisar quando e como isso ocorreu. O que podemos afirmar é que isso ocorreu ao longo de pelo menos três levas de baianos, que partiram de algumas regiões da Bahia em direção a região de Guiratinga, levas que como disse anteriormente vinha em busca da riqueza dos garimpos, e de terras onde pudessem se fixar.
A “Alimentação das Almas” é um ritual religioso que ocorre somente na quaresma, (já que para os católicos trata-se de tempo de penitência e oração), e inicia com a oração do santo terço, após o grupo sai às ruas, geralmente partindo da frente de Templos Católicos ou pontos escolhidos a esmo, onde se começa uma “estação”, nome dado às paradas da via cruzes, a qual o ritual pode ser comparado, pois durante “Rito das Almas” se celebra a paixão e morte de Cristo, a quem é dirigida às orações e pedidos de salvação. O ritual é praticamente todo cantado, somente não se canta as orações do PAI-NOSSO, da AVE-MARIA, e da SALVE RAINHA.
O ritual é iniciado em frente ao cemitério em horário já avançado, com todos em silêncio e já cobertos por lençóis brancos. Bate-se a matraca, instrumento de madeira composto de três partes e que produz um som muito característico, que é tocado por três vezes, e é iniciado o canto do Bendito das Almas. Segundo os praticantes a matraca tem a função de despertar, reunir e conduzir as almas de modo que essas não se percam. Peça central, a matraca vai à frente da procissão sendo seu condutor responsável por conduzir a reza e o ritmo em que ela ocorre, determinado o local das “estações”, os cantos etc.
Se ouvirmos com atenção os cantos, veremos que são a “chave” para a compreensão de todo ritual da “Alimentação das Almas”, pois são em torno deles que se organizam as orações, os pedidos de redenção, sendo ele o principal canto, ou melhor, o principal “Bendito”, todos os demais cantos e benditos são complementares a ele. E é nesse bendito que encontraremos a crença que dá origem e justifica a “Alimentação das Almas”, a crença na existência do purgatório, do inferno, do paraíso, de Deus, dos santos e é claro a crença na existência da própria alma. Os olhares dos moradores que espiam pelas frestas demonstram um misto de medo e curiosidade, em momentos parece que as próprias almas se esgueiram ao redor.
Encerrada a estação todos se levantam, e seguem cantando até o local da próxima estação tendo ligeiramente à frente o responsável pela matraca, que segue tocando-a em ritmo leve e constante. Ao chegar ao local da próxima estação, geralmente igrejas, a matraca é tocada em ritmo forte por três vezes.
O encerramento da “Alimentação das Almas” ocorre no cemitério, aos pés do cruzeiro, onde é realizada a última estação, ocasião em que se canta ou reza o OFÍCIO DAS ALMAS.
Senhor me confesso, sem número
Das ofensas feitas a vós,
E dela vos peço perdão.
Tende misericórdia de nós…