Fonte: CEDOC Dom Tomás Balduino/CPT
Fotografia de capa: Ahmad Jarrah
Em 2022 foram registradas 1.572 ocorrências de conflitos por terra no país. O número representa um aumento de 16,70% em relação ao ano anterior. Ao todo, 181.304 famílias viveram diante da mira desse tipo de conflito no Brasil, 4,61% a mais que o registrado em 2021. Os casos inseridos nesse eixo são as ocorrências de violências contra a Ocupação e a Posse e Contra as Pessoas, além das ações coletivas de Ocupação de terras e Acampamentos.
Os dados apontam que, em 2022, o aumento dos casos de violência por terra (1.500 registros) contribuíram proporcionalmente para a diminuição do número de ocupações e acampamentos (72), o que demonstra o cenário de martírio no qual se encontram os povos do campo, das águas e das florestas no Brasil. Essa dura realidade associa-se diretamente à política do ódio contra os injustiçados e injustiçadas da Terra e à ausência de políticas estruturantes para o campo. Com estes números, encerra-se o ciclo de quatro anos do governo Bolsonaro, período marcado por ser o mais violento contra essas populações no século XXI.
Geografia dos conflitos por terra
A região Norte concentrou o maior número de ocorrências de conflitos por terra do país (626 casos), seguida da região Nordeste (496), Centro-Oeste (278), Sudeste (94), e região Sul (78). Os estados com os maiores números de ocorrências desse tipo de conflito foram: Bahia (179), Maranhão (178), Pará (175), Amazonas (152) e Mato Grosso (147). Os dois últimos destacam-se ainda por registrarem os maiores crescimentos de conflitos por terra de 2021 para 2022, com saltos de 120,28% e 61,53%, respectivamente.
Das cinco unidades da federação com índices mais elevados, quatro integram a Amazônia Legal. A região concentrou 59% de todas as ocorrências de conflitos por terra registradas pela CPT em 2022, com 926 casos, uma porcentagem maior do que os 51% registrados em 2021. A curva ascendente na Amazônia Legal a torna um dos mais graves epicentros da violência no campo na atualidade. Esse cenário reflete a determinação política do governo federal em transformá-la num palco de exploração e devastação, criando um verdadeiro campo minado, no qual foram atingidas 121.341 famílias de povos originários e comunidades camponesas em 2022.
Povos indígenas e posseiros são os principais atingidos
Por trás dos números dos conflitos por terra está o martírio de famílias, povos e comunidades que vivem uma rotina de ataques contra suas vidas e suas terras e territórios. Desde 2019, os povos originários aparecem nos registros da CPT como a categoria que mais vem sofrendo ocorrências de violências nesse eixo. Em 2022, eles seguiram em evidência. Do total de ocorrências registradas, 28% envolveram povos indígenas. Em seguida, estão as famílias posseiras, envolvidas em 19% dos casos, as comunidades quilombolas (16%), sem terras (11%) e famílias assentadas da reforma agrária (9%). Outras categorias camponesas apareceram em menor porcentagem, como: fundo e fecho de pasto, ribeirinhos, pescadores e extrativistas.
Os dados também apresentam os principais causadores desses conflitos, os quais incluem grandes empreendimentos de exploração mineral e de geração de energia, empresas do agronegócio e monocultivos, garimpo, pecuária e o próprio Estado brasileiro. Em 2022, os fazendeiros foram responsáveis por 23% das ocorrências de conflito por terra, seguidos do governo federal, com 16% , empresários, com 13% e grileiros, com 11% . A principal mudança em relação ao ano de 2021 foi o crescimento da participação do governo federal nos conflitos por terra, que saltou de 10% para os já mencionados 16% O protagonismo do Poder Executivo foi observado não apenas na execução de ações destinadas a coibir grupos sociais no campo, como também na omissão e conivência em contextos de conflitos por terra e violações de direitos.
Invasão de territórios, despejo, grilagem, pistolagem, agrotóxicos: a rotina de ataques contra povos e comunidades
Os registros da CPT evidenciam a intensidade e os tipos de violência a que estão submetidos os povos do campo, das águas e das florestas. Em 2022, a ação mais recorrente registrada pela CPT contra essas populações foi a invasão de territórios, que afetou 95.578 famílias em todo o país, e mais: do total de assassinatos no campo ocorridos em 2022, 14,89% estavam associados a esse tipo de violência. Em 2021, o número foi de 5,56%.
Segundo o levantamento do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT), as invasões de territórios vêm crescendo no país, sobretudo a partir de 2019. Entre 2013 e 2022, houve 1.935 ocorrências no Brasil. Porém somente nos anos do governo bolsonarista foram registradas 1.185 ocorrências desse tipo de violência, o equivalente a 61,25% dos registros da década. Do total de 661 Terras Indígenas invadidas na última década, 411 das ocorrências se deram entre 2019 e 2022. Essas ações associam-se a outra registrada pela CPT: o desmatamento ilegal, que em 2022 atingiu 59.318 famílias no país.
A pistolagem no campo também cresceu em 2022. O Cedoc-CPT registrou 180 ocorrências desse tipo de violência no ano, um aumento de 86% em comparação a 2021. O número de famílias afetadas foi de 30.624, 32% a mais do que o registrado no ano anterior. Os dados também indicam que 27,66% dos assassinatos no campo estavam ligados a alguma ocorrência de pistolagem. Em 2021, a porcentagem foi de 11%. O levantamento feito pela CPT destaca que a prática de pistolagem no campo emerge em contextos de ausência de mediação ou atuação do Estado para solucionar ou pelo menos mitigar os conflitos no campo.
Já o número de famílias ameaçadas de despejo foi de 24.258, um aumento de 37% em relação ao ano anterior. O índice acende um alerta para as populações do campo e organizações sociais sobre a atuação do Poder Judiciário nos próximos períodos, uma vez que não está mais vigente a lei 14.216/2021 que determinou, até o ano passado, a suspensão de despejos em razão da pandemia da Covid-19.
O Caderno Conflitos no Campo Brasil 2022 evidencia ainda outra situação alarmante: em 2022, 6.831 famílias foram atingidas pela aplicação de agrotóxicos, 86% a mais que 2021 e o maior registrado pela CPT desde 2010 apurada pela Pastoral. O uso criminoso de agrotóxicos como arma química tem sido, quando esse tipo de violência passou a ser denunciado pelas populações afetadas como uma estratégia para inviabilizar a permanência delas na terra ou no território ao impactar diretamente o direito à alimentação adequada, à água limpa e à saúde. Um dos casos registrados em 2022 ocorreu nas comunidades dos Engenhos Fervedouro e Barro Branco, localizadas no município de Jaqueira, Zona da Mata Sul de Pernambuco. As famílias agricultoras posseiras da localidade já enfrentavam um conflito por terra provocado por empresários pecuaristas quando, em setembro, foram surpreendidas com a pulverização de agrotóxicos, por meio de drones, em suas lavouras. A aplicação do veneno não apenas devastou as plantações, como contaminou as fontes de água que abastecem os agricultores e agricultoras da comunidade.
Assassinatos marcam os conflitos pela água no Brasil
Em 2022, foram registradas 225 ocorrências de conflito pela água, sendo 57,7% situadas na Amazônia Legal. Ainda que o número total seja 27,65% menor em comparação a 2021, esse tipo de violência atingiu, em 2022, níveis brutais, com registro de quatro assassinatos. Dois deles ocorreram no estado do Amapá, no dia 23 de janeiro de 2022. Na data, os pescadores Elias Penha Gibson e Gedeão Dias de Oliveira foram assassinados a mando de fazendeiros em razão do conflito pelo território de uso tradicional no entorno do Lago Pracuúba. Outros dois casos ganharam repercussão internacional: os assassinatos do indigenista e servidor da Funai Bruno Pereira, 41, e do jornalista britânico Dom Phillips, 57, que vinham combatendo a prática de pesca ilegal em território indígena. Bruno e Dom foram mortos no dia 5 de junho após expedição pelo Vale do Javari, no Amazonas.
Os estados que mais registraram ocorrência de conflitos pela água foram o Pará, com 51 registros, seguido do Maranhão, com 26, e do Amazonas, com 25. Quanto aos principais agentes causadores, apesar de a mineração ser uma das atividades econômicas protagonistas na disputa por esse bem, em 2022 ganharam destaque os empresários nacionais e internacionais, responsáveis por 32% das ocorrências. Nesse setor estão presentes as empresas ligadas ao agronegócio, que têm sido alvo de denúncias e críticas por parte de povos, comunidades e organizações sociais uma vez que atuam por meio da apropriação, contaminação, privatização e mercantilização desse bem. Com relação à categoria afetada, diferente de anos anteriores em que pescadores eram os mais atingidos, em 2022 foram os povos indígenas os que mais sofreram esse tipo de violência, aparecendo em 46 das 225 ocorrências.