Fotografias: Nícolas Chidem
Reportagem: Bianca Gross, Isabela Pizzi, Laura Paré, Levi Pires, Felipe Lopes, Felippe Morais.
A pobreza extrema, a falta de saneamento básico e a precariedade das moradias são desafios para conter a expansão no Brasil da Covid-19. Enquanto para a maioria da população a água é bem de acesso fácil, sobretudo para realizar a higienização básica das mãos durante a Pandemia por coronavírus, no alto dos 287 metros de altitude do Morro da Polícia, cerca de 120 pessoas não sabem como é ter água encanada em casa, elas fazem parte dos 16% da população brasileira que não têm acesso à água fornecida por meio da rede geral de abastecimento.
O Morro da Polícia fica no bairro Glória, zona leste de Porto Alegre, a apenas 10km do centro da cidade. Ainda assim, não é de conhecimento público que cerca de 30 famílias vivem dependentes de um caminhão pipa para abastecer seus galões e caixas d´ água. Uma situação extrema de saúde pública na 6ª cidade com maior economia do Brasil.
A carência do saneamento básico atinge 74,2 milhões de pessoas no Brasil (37% da população) que vivem em áreas sem coleta de esgoto, mas o maior impacto está nas famílias de baixa renda, muitas delas residentes em áreas irregulares. O abastecimento de água é um problema para os moradores do Morro da Polícia. Água para lavar as mãos, escovar os dentes, tomar banho e cozinhar. Água para dar descarga, lavar roupa e limpar a casa. Água para beber. Um bem fundamental e indispensável, mas que ainda assombra Lúcia Rejane da Silva Monteiro, 62 anos.
Moradora de um dos pontos mais altos da encosta do Morro, Lúcia vive no local há 30 anos. Quando chegou, as árvores tomavam conta da região. Aos poucos, esse cenário foi se modificando com a chegada de outros moradores, outras casas irregulares, outras vias de chão batido, outros problemas. Empregada doméstica, Lúcia se viu obrigada a abandonar o emprego para cuidar do filho mais novo, Tawan, autista. Divide uma casa de madeira de três cômodos com dois filhos e o neto, de sete anos, e sustenta com o dinheiro que recebe do benefício do jovem. É grande o volume de problemas no entorno de Lúcia. Mas algo que deveria ser simples amplia ainda mais as dificuldades cotidianas da dona de casa. Se para muitos, basta abrir a torneira para ter água, para Lúcia essa realidade é bem distante.
Conhecida por todos na comunidade, ela conta que a provisão de água sempre foi precária e com pouca pressão. Quando a água chegava até o morro, geralmente à noite, enchia os galões e corria para avisar a vizinhança. “A água vem chegando!”, gritava. A partir de junho de 2017, no entanto, o que já era escasso, secou de vez. E a água parou de subir nos canos. A alternativa, então, foi buscar na parte mais abaixo do morro e guardar a água da chuva. Essa foi a rotina por longos sete meses: idas e vindas pelas lombas íngremes da comunidade carregando baldes e galões. “Eu já carreguei muita água na minha vida”.
Cansados desta realidade, Lúcia e outros moradores da região fizeram um abaixo-assinado para que um caminhão-pipa pudesse levar água até a comunidade. A luta deu resultado. Desde dezembro de 2017, uma vez por semana, o pipa abastece a população do Morro da Polícia. O cenário melhorou. Mas ainda é precário. De acordo com dados do governo do Estado, por meio da Lei de Acesso à Informação, 99,5% da população em Porto Alegre têm acesso à água encanada. Os outros 0,5% dependem do abastecimento por caminhão-pipa. Ou seja, cerca de 7,5 mil porto-alegrenses não têm água em casa. Parece pouco, mas não é. Isso representa uma população maior do que Protásio Alves (2000), Vespasiano Corrêa (1974), São Vendelino (1944) e Tupanci do Sul (1573), municípios do Rio Grande do Sul. É como se todos os habitantes dessas cidades dependessem cotidianamente de um caminhão-pipa.
Na frente de casa, Lúcia conta com uma caixa d’água de mil litros, cinco tambores e 23 galões de cinco litros cada. Tudo para armazenar uma água de qualidade questionável.
“Tem vezes que chega com uma coloração diferente”. Reforça Lúcia.
Segundo o Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), a água do caminhão-pipa é a mesma entregue para a população nas torneiras, atendendo aos padrões de portabilidade do Ministério da Saúde.
Hoje, o cenário das quartas-feiras é sempre o mesmo. Lúcia, no sol ou na chuva, enche os galões no caminhão-pipa e carrega tudo para dentro de casa, muitas vezes com a ajuda de seu neto Maurício. Desce e sobe as ladeiras esburacadas do Morro da Polícia para ter o básico, água. Lúcia e os vizinhos não sabem até quando vão seguir nesta rotina. Não sabem se os filhos e os netos seguirão buscando água em caminhões-pipa. A única coisa que eles sabem é que esta é uma história que parece não ter fim.
Lúcia está longe de ser a única mulher a sofrer com a falta de água encanada na comunidade. Abatida, Cátia Regina Rosa aparece para conversar conosco. Ela é mais uma entre tantos moradores do Morro da Polícia que não tem acesso à água. Uma caixa d’água de cinco mil litros chama atenção: de que forma Cátia consegue encher esse reservatório? Com a água da chuva.
Como a água da chuva não é própria para consumo, é rotineiro, segundo ela, encontrar dejetos de pássaros e poluentes por causa da atmosfera. Cátia não usa somente a água da chuva porque todas as quartas-feiras o caminhão-pipa chega ao Morro. O problema é que dificilmente dura até a próxima semana. A casa de Cátia fica distante do local onde o caminhão-pipa estaciona para disponibilizar água. Mas a necessidade fala mais alto.
Mesmo chegando pelo DMAE, Cátia e seus filhos não tomam a água, pois muitas vezes a coloração da água denuncia uma qualidade não tão boa, então eles preferem comprar água para beber a utilizar a que vem pelo caminhão, ainda que tenham que gastar quinze reais por uma garrafa de cinco litros.
Desde que se mudou para o Morro da Polícia, há poucos mais de dois anos, Cátia, junto com os outros moradores, enfrenta o problema com a chegada de água nas torneiras. Em 2016, havia água.
Chegava tarde, por volta das 23h, mas chegava. Agora, os canos estão secos porque a água não sobe ao topo do lugar. A solução, por muito tempo, ainda deverá ser o caminhão-pipa, infelizmente.
Do alto da comunidade é possível avistar quase toda a zona norte de Porto Alegre, o lago Guaíba e uma boa parte da zona sul da cidade. Uma vista privilegiada que esconde uma realidade precária. Desde que se mudou para a comunidade, Patrícia da Silva Azevedo não sabe como é ter água encanada. Quando o ponteiro do relógio está prestes a marcar oito e meia da manhã, o motor do caminhão tanque ecoa na lomba íngreme da comunidade. Na área de casa, Patrícia prepara a caixa d’água. Um funcionário do DMAE tira a mangueira do caminhão. O outro libera os litros de água que abastecem a casa onde mora com outras duas pessoas.
Na cozinha, ela se vira como pode, armazena sete galões de água para garantir a bebida e a comida da semana. Quando se depara com uma coloração ou cheiro diferente, já sabe: não vai dar para consumir. Quando a água acaba, o jeito é recorrer aos vizinhos que moram na parte mais abaixo do morro ou comprar água mineral no mercado da esquina.
Não é sempre que eu tenho dinheiro para comprar água para beber.