Os esquecidos

Texto e fotos: Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski

O sol a pino nunca dá descanso, o calor atravessa a pele e escorre em água pelos poros. É preciso equilíbrio, para caminhar por entre as grandes poças que tomam conta da rua de terra. É como um jogo de amarelinha, com pequenos saltos entre uma ponta de pedra e outra, que se sobressaem ao esgoto. A rodinha da bicicleta que atravessa a rua se entranha na naquela lama fétida e nos conduz até a casa de dona Ana Maria.

A rotina de dona Ana se cruza com a de mais quatorze netos e uma filha que moram nos vinte metros quadrados que abrigam os dois cômodos da casa. Enquanto uns chegam, outros partem e é assim o dia inteiro. A pequena casa de alvenaria é uma conquista, já que morava antes em um barracão improvisado no Parque Geórgia, onde vive há quase trinta anos.

O bairro é fruto de uma ocupação que divide terreno com um aterro. A infra-estrutura inexiste, falta asfalto, transporte público, coleta de lixo, saneamento básico, limpeza e serviços urbanos por parte da prefeitura. Só há alguns meses os Correios passaram a entregar correspondência, “aqui, toda vida nós fomo esquecido!”, desabafa Dona Ana.

Nascida em uma usina de cana-de-açucar na zona rural de Santo Antonio de Leverger, Dona Ana leva no corpo as marcas dos anos de trabalho. Chegando aos 61, ainda não se aposentou e nem sabe se o fará. A perda do Bolsa-Família desestruturou a casa, levando-os a ter mais dificuldades ainda “cancelou porque disseram que eu recebo o Panela Cheia, mas nunca recebi nada”.

Sua renda vem de pequenos bicos de doméstica, capinagem e coleta de latinhas na rua. Mal raia o dia, ela sai em sua bicicleta atrás de latinhas pelos bairros vizinhos. Para cada semana, arrecada cinquenta reais. Relata que já não consegue mais tanto trabalho por conta da idade.

“Um dia fui buscar uma faxina, a moça quando viu minha idade não quis. Mas, pra ajuda me deu umas panela e outras coisa. Aí eu tava voltando pra casa, e ela veio atrás gritando meu nome. Pensei: ‘Ih! O que que eu já fiz? Pronto! Vai levar as coisas de volta’. Eu parei e ela veio me falar que contou minha história pro marido, e estendeu a mão. Quando eu olhei, era sessenta reais. Ai, fiquei feliz demais. Já passei ali no açougue, comprei um ossinho, pus no feijão e foi a festa aqui em casa”, conta emocionada.

Na casa de dona Ana “são muitas bocas, e eu não sei dizer não. Como que vou deixar um sangue meu na rua?”. Já passa do meio dia, e a criançada se assanha para o almoço. Normalmente, é arroz e feijão. O neto observa a prima comer, enquanto a mãe serve seu prato. O alimento é o vetor que conduz toda a rotina da casa.

“Às vezes ganho almoço no trabalho, aí o povo pergunta ‘num vai comer dona Ana?’ e eu respondo que não, que prefiro comer em casa, porque já tomo meu café, fumo meu cigarro e descanso. Mentira! Eu trago pra casa pra dividi entre eles. Como que vou comer lá e deixar meus neto com fome aqui? Tem vez que eu fico sem almoçar pra dar pra eles”.

Quando a fome bate, as crianças se apegam ao que tem por ali. Mas, nem sempre isso é de contento, “às vezes passa um aí chupando uma coisa, e as criança vê e criança não é que nem a gente, elas querem. Hoje ganhei cinco reais lá em cima, agora to esperando o carro de picolé passar pra comprar, porque ontem o Artur teve até febre que viu o menino chupando”.

As crianças dão vida para casa, num fluxo constante entre a televisão e o quintal. Os entulhos se transformam em brinquedos na imaginação dos mais novos, o espelho vira celular para uma selfie. As netas e netos adolescentes ajudam a cuidar das crianças. Para dormir, os quinze dividem duas camas casal e uma solteira, “a gente dorme de atravessado pra caber todo mundo”.

Se alguém fica doente, usa seus conhecimentos populares e maneja as ervas e raízes medicinais que colhe no quintal.

Na vizinhança as mesmas situações também se repetem, assim como em muitos outros bairros e ocupações da cidade. Às vésperas do tricentenário, é emergente que Cuiabá priorize as pessoas que estão à margem da atenção pública, sem assistência, chegando a desumanidade.

Nunca foi tão evidente os níveis de pobreza que só se aprofundam, levando ao desespero pela falta de amparo. Dona Ana continua sua luta pela subsistência da família e o poder público, fingindo que ela não existe, comemora com festa os 298 anos da capital.

*Dona Ana necessita de doações de alimentos que poderão ser entregues diretamente em sua casa. Para mais informações, entrar em contato com a redação através do email:
editoria@alente.com.br ou pelo telefone 65 98152-2009.
**Os nomes das crianças são fictícios, por se tratarem de menores de idade.

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