Ancestralidade e protagonismo negro em Cuiabá

Lavagem das Escadarias da Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito reforça a  importância da  igualdade racial, liberdade religiosa e paz entre os povos

Eram meados da segunda década do século XVI quando os primeiros relatos sobre uma tal “alavanca de ouro” começaram a circular pelo Largo do Rosário, em Cuiabá, no contexto da construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Enquanto um grupo de homens negros escravizados construía a igreja, outros grupos eram obrigados pela coroa portuguesa, debaixo de suplício, a lavrarem a terra em busca do metal precioso, às margens do córrego da Prainha. Em uma noite, segundo narram os relatos, um destes homens avistou um brilho reluzente em forma de alavanca e várias versões sobre uma suposta “mãe do ouro” e “alavanca de ouro” passaram a ocupar espaço no imaginário cuiabano.

Esse tesouro jamais foi encontrado, mas à época foi usado para penalizar ainda mais o povo negro, cuja liberdade lhe fora roubada na África para viver sob o horror da escravidão no Brasil. E é exatamente neste ponto, onde um antepassado negro avistou a Alavanca de Ouro, que acontece a concentração para mais uma edição da Lavagem das Escadarias da Igreja Nossa do Rosário e Capela de São Benedito, que teve sua 6ª edição realizada no dia 25 de junho.

A celebração, que se tornou tradição na capital mato-grossense, é protagonizada por remanescentes de territórios quilombolas e representantes das religiões de matriz africana. Desde 2017, centenas de pessoas ocupam as ruas do Centro Histórico de Cuiabá para saudar e homenagear a ancestralidade negra durante a manifestação cultural e espiritual afrobrasileira que congrega cultura da paz, sempre uma semana antes da Festa de São Benedito, que louva ao santo negro do qual sua devoção em Cuiabá simboliza a igualdade racial e diversidade religiosa.

Você está num centro histórico que é um quilombo urbano visível. Aqui ao lado você tem a Ricardo Franco que é a Rua das Pretas, aí mais a frente você tem a Praça da Mandioca, que foi um pelourinho, aí você tem a primeira escola de música no Baú Sereno com Mestre Inácio, aí você tem a Praça da Mãe Preta, aí você tem o Quilombo Quilombinho que foi literalmente um bairro aqui na área central que foi um quilombo. A gente se questionava porque não havia referência em nosso patrimônio material e imaterial da cultura indígena e africana. Desses questionamentos surge a Rota da Ancestralidade, por onde esses nossos ancestrais passaram, esses becos e ruelas aqui nessa espacialidade preta que é o centro histórico de Cuiabá”

Cristóvão Luiz, um dos idealizadores e realizadores da Lavagem das Escadarias da Igreja do Rosário e São Benedito, falando sobre a gênese deste movimento. 

A Lavagem das Escadarias da Igreja do Rosário e São Benedito começou a ser concebida em 2016, fruto do encontro entre pessoas ligadas à religiões de matriz africana, professores, pesquisadores, historiadores e geógrafos. Em 2018, foi inserida no calendário oficial de eventos culturais de Cuiabá, por meio da Lei 6.304/2018. Além disso, também já está em processo de registro no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN-MT). 

Assim como o contraste que existe na principal referência à cerimônia, a Lavagem das Escadarias do Bonfim, em Salvador, a festa oficial em homenagem a São Benedito é predominantemente católica. Construída pelas mãos dos povos africanos escravizados, entre 1725 e 1730, a Igreja só foi receber a primeira lavagem das escadarias em 2017, quase trezentos anos depois. Na ocasião, com a presença do centenário mestre da cultura e remanescente de quilombo, Antônio Mulato, com 112 anos de idade, Ele acompanhou a cerimônia e, após seu falecimento, em 2018, é homenageado a cada edição.

POR UMA CULTURA DE PAZ

Por uma Cultura de Paz é exatamente o tema desta 6ª edição, que se posiciona contra a intolerância religiosa e promove um encontro ecumênico com fiéis de diversas crenças, como católicos, presbiterianos, anglicanos e muçulmanos que estiveram presentes. Arcabouço do sincretismo religioso, o Brasil tem suas raízes miscigenadas ainda flageladas pelo preconceito e intolerância, dessa forma este acontecimento tem o objetivo de promover uma cultura de paz.

Antes da lavagem das escadarias, é realizada a caminhada em celebração à toda ancestralidade africana e para saudação dos antepassados. Tambores e canções religiosas embalam o percurso pelas ruas do centro histórico até a chegada na igreja. A presença feminina na cerimônia é muito intensa, são as mães que carregam as quartinhas, as flores e entoam os cânticos e abençoam as pessoas com água de cheiro.

Nas vestes tão ricas em detalhes, as cores azul e branco se sobressaem e somam ao céu, iluminado pelo característico sol cuiabano. O sentimento de paz, união, respeito, fé e devoção é potencializado a cada gesto em reverência à toda a ancestralidade africana.

A beleza dos movimentos que resplandece durante a lavagem da escadaria é carregada de uma dimensão política que não passou despercebida e motivou debates que demonstraram o quanto ainda é preciso lutar contra o preconceito e a intolerância, reforçando a importância e a potência da cerimônia que é realizada anualmente.

Em meio à caminhada, as quartinhas se sobressaem. “As quartinhas são os vasos brancos que as mães carregam. As mulheres que trazem a vida, e você traz a vida pela água-de-cheiro, que as mães usam para que as pessoas recebam o axé. Elas trazem o seu axé e levam o nosso axé. As mães de santo são responsáveis por fazer essa preparação no dia anterior, com ervas como manjericão e alecrim. As vassouras, quando você lava as escadarias, você tá lavando todo ódio, toda raiva, toda discriminação, todo preconceito, então você ta lavando tudo isso” explica Cristóvão. 

As religiões afrobrasileiras de berço mato-grossense, historicamente marginalizadas, retomam o protagonismo que lhes era impedido historicamente, violentados primeiramente pela escravidão, posteriormente subjugados ao racismo que os colocou em uma condição de desigualdade e exploração que segue até os dias atuais sendo combatida. Por fim, ainda são vítimas da intolerância, com a difamação das religiões de matriz africana disseminadas pela desinformação e preconceito. Para as instituições que fazem parte da organização, a cerimônia é um importante instrumento de luta contra a intolerância religiosa e pelo protagonismo da população negra em Cuiabá.

LAVAGEM DAS ESCADARIAS

“A Lavagem é resistência! Em tempos de guerra a gente traz o amor em forma de axé. E é por isso que a gente agrega esses valores culturais e inter-religiosos. Por isso nós convidamos os quilombolas, os indígenas, os muçulmanos, os anglicanos, os presbiterianos e pessoas que não tem religião para congregar, em tempos de guerra, o amor por uma cultura de paz” pontua Cristóvão. 

Depois do percurso pelo Centro Histórico, os participantes em frente às portas da Igreja, quando lançam as pombas brancas ao céu enquanto entoam cânticos de paz. Depois, se finda de forma poética, com homens e mulheres lavando até o último degrau da escadaria com um forte jato de água que cintila com os raios solares.

A água escorre carregando impurezas, limpando Cuiabá da tristeza, da dor, do racismo, do preconceito e da intolerância, abrindo caminhos para a felicidade, para o respeito pleno entre as pessoas. A cerimônia é organizada pela Associação Lavagem das Escadarias Rosário e São Benedito e tem o apoio da Prefeitura de Cuiabá, por meio da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer.

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