Um paradoxo Cortez

Texto e Fotos: Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski

Quando vida e arte se misturam a pinceladas, criando infinitos tons que são absorvidos pela pele, levam o corpo a dançar e brincar em delírios surrealistas que provocam uma transformação na forma de se conectar com o mundo. A intensidade dessa entrega levou o artista Benedito Aleixo Cortez à um mergulho nas artes plásticas, imergindo nas profundezas de seu próprio ser.

De alma autodidata, muitos princípios da pintura foram desenvolvidos no Ateliê Livre da UFMT, onde seu trabalho ganhou expressão e relevância. As exposições são memórias que Aleixo recorda saudoso atualmente, enquanto oferece suas telas a trinta ou cinquenta reais pelas ruas de Cuiabá.

As telas deixaram gradualmente as galerias e foram carregadas em suas costas, uma a uma, para as ruas em um contínuo processo derivado do instinto de sobrevivência. Distante da consciência racional e pragmática de editais e projetos, e sem qualquer profissional para produzi-lo ou fonte de financiamento, depende da venda direta de suas obras.

Vive um conflito entre a consciência do valor do seu trabalho e a necessidade que o leva à desvalorização. Diferentes contextos situacionais, tanto pessoais, como políticos, sociais ou econômicos, conduziram Aleixo a uma condição nômade, um peregrino das ruas, alguém que pulsa vontade de viver, de ser livre para criar.

Essa condição o levou a ocupar diversos casarões históricos abandonados, pelo centro de Cuiabá. A humildade vem desde o berço poconeano, das mãos de sua mãe Adelaide, que lhe abriu caminhos trabalhando como empregada doméstica, para que Aleixo descobrisse o mundo através da pintura.

Adentrar o lar de um autêntico artista é como se introduzir em seu foro mais íntimo, profanar seu templo sagrado erigido à solidão. Às ruínas, como testemunha, pode levantar a voz para perguntar: “Como deixaram isso acontecer a um artista?”. Onde os paradoxos tomam corpo e libertam diversos Eus que murmuram pelos corredores, reunidos para celebrar sua existência.

Os pensamentos se tornam algozes das forças e esse movimento enviesado foi empurrando Aleixo para a margem da margem. Em meio aos grandes cômodos da casa onde mora hoje, se espalham todo tipo de objetos coletados da rua, descartados por outrem e transformados em arte, desde sapatos, roupas, aparelhos eletrônicos, a centenas de bastidores, utilizados para emoldurar as telas.

Na sua intimidade, é possível perceber o sagrado e o profano misturados de forma indissociável em seu cotidiano. Mostra-se o tempo todo convicto de sua fé cristã ao mesmo tempo que devota práticas de um corpo que se faz livre perante os prazeres da vida. Aleixo diz ser consciente de seus vícios, e vive um conflituoso monólogo que paira sob sua cabeça, ora pendendo ao sagrado e ora ao profano.

Os objetos que povoam o casarão são organizados como uma extensão de sua mente, a inventividade na luta pela vida. Sua companhia é uma pequena cadela, pretinha, que acompanha Aleixo durante seu processo criativo e divide espaço com tintas e pincéis.

Por vezes, é difícil perceber quando Aleixo está um instante de lazer e quando ele está em um momento de trabalho, as duas coisas parecem uma só. Assim como seus pensamentos, que também se misturam o tempo todo, se tornando uma consciente narrativa fragmentada, não-linear. Depois de um tempo reflexivo andando de um lado a outro, fala em tom de suspiro “as meninas vem aqui com umas amigas, a gente bebe aqui, curte aqui e dorme aqui nessa cama. Mas eu não quero mais, vou virar uma biscate, uma flor, uma rosa. Porque eu não sou homem, sou anjo. Meu sonho é quando ficar mais velho, vou usar uma saiona, vestido de mulher”.

Distante das galerias, e sem encontrar uma forma de valorizar sua arte, Aleixo jamais deixaria de ser artista, é uma condição que habita seu corpo, uma expressão do seu ser, de estar no mundo. Ainda grita para que seja ouvido, reconhecido, para que sua voz encontre eco em outras, e não se perca no vazio.

Leva sua inquietação, provocando, cutucando, incomodando, emanando enquanto ser, irradiando potência criativa. Lá dentro, no interior da fractal memória fragmentada, cheia de recordações futuras e prospecções passadas, alimenta a esperança de uma vida digna que respeite o artista.

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