O Congo de Livramento

Texto: Carla Ladeira Pimentel Águas*
Fotos: Ahmad Jarrah

A história de dois reinos em luta é perpetuada em Nossa Senhora do Livramento a mais de cem anos, com a Dança do Congo.  Soberanos se enfrentam, com seus exércitos, espadas e figurinos vistosos, em um teatro popular dramático de uma guerra entre dois reinos, o do Congo (representado pela cor vermelha) e a dos Monarcas (representado pela cor azul) com cantos, danças e versos trovadorescos, entre os personagens das duas cortes.

O Congo de Livramento nasceu dentro da comunidade de Mata Cavalo em meados do século XIX. A autoria do texto perde-se nos tempos. A apresentação se caracteriza por uma delicada beleza poética, atravessada pela ironia e por diversas palavras de origem africana.

A migração dos descendestes africanos dançantes foi acentuada na primeira metade do século com a queda da exploração de ouro na região Cocais e a busca de trabalho e sobrevivência no rio Cuiabá Abaixo. O Congo foi espalhado por toda a Baixada Cuiabana, unindo os seus dançantes em grandes festas de congregação e louvor a São Benedito. Por todo Brasil, existem manifestações do Congo, Congada, Congado, dentre outros folguedos que, guardando as grandes diferenças de forma e enredo, celebram o sagrado.

Esta dança dramática, nascida do imaginário de Mata Cavalo, ganha grande visibilidade durante a festa de São Benedito de Nossa Senhora do Livramento, realizada anualmente em abril. Segundo Maria de Lourdes Bandeira Dantas e Mendes, Significando socialmente um saber negro, na perspectiva da alteridade, festa e Congo remetiam a um saber étnico, distintivo do grupo. […] O rito propiciava a emergência social de subjetividades, visibilizando o negro como presença concreta no social, resgatando sua imagem de forma positivada; contando uma outra história do negro para o grupo, do grupo para os outros negros, dos negros para o branco, para a sociedade local e regional. Como saber, o Congo inscrevia no social a competência e a criatividade do negro como pessoa.

A celebração de São Benedito de Nossa Senhora do Livramento, apesar das suas dimensões, guarda características em comum com as festas de santo existentes na região, como as peregrinações de esmola para recolha de doações e a mobilização em torno da cozinha. Apesar de ser uma festa ampla, a abundância de alimentos e a gratuidade permanecem. De manhã, um tchá co bolo tradicional, com biscoitos de polvilho é oferecido para todos os participantes e público, e um almoço é preparado com pratos típicos da região, como a maria isabel, farofa de banana e carne com banana verde.

O grupo de Congo é o grande protagonista da celebração. Os dançantes se reúnem no domingo de manhã em frente à igreja matriz, de onde sai a procissão da imagem de São Benedito, carregada sobre um andor. O grupo passa de casa em casa, dançando para todos os que abrem suas portas, geralmente com comidas e bebidas para oferecer.

Em seguida, o Congo retorna para a praça da matriz, onde o teatro a céu aberto é apresentado. Por fim, terminada a guerra, o grupo dança na Casa de São Benedito – um espaço dedicado ao santo no centro de Livramento. A peleja entre os reinos representada pela dança do Congo é acompanhada por espectadores de várias procedências: além da população da própria sede, a cidade recebe membros das comunidades rurais; turistas, jornalistas, acadêmicos e demais visitantes de outros municípios, o que também inclui aqueles que saíram de Mata Cavalo para não mais voltarem.

* Carla Ladeira Pimentel Águas é doutora em Sociologia pelo Programa de Doutoramento em Pós-colonialismos e Cidadania Global, com orientação do Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos, pela Universidade de Coimbra – Portugal. Sua tese, intitulada QUILOMBO EM FESTA: Pós-colonialismos e os caminhos da emancipação social, está disponível aqui!

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