Texto: Juliana Arini
Fotografias e Fotos Aéreas: Bruna Obadowski
Esta reportagem foi publicada originalmente Na InfoAmazonia e Deutsche Welle Brasil.
*A viagem foi realizada com apoio do Programa Observa-MT. Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.
Fogo persistente aflige moradores da Bacia do Alto Paraguai, região de transição entre Amazônia e Cerrado que responde por 70% das chuvas que formam o Pantanal. Imagem de abertura: quilombola morroquiano observa o fogo nas margens do Rio Jauquara, em 11/10/2020. Foto: Bruna Obadowski.
Os incêndios contínuos na Província Serrana, uma região de transição entre os biomas Amazônia, Cerrado e Pantanal, em Mato Grosso, são um exemplo da dinâmica que relaciona as mudanças climáticas ao aumento das queimadas no Centro-Oeste do país. A região, a 200 quilômetros da capital mato-grossense, abriga importantes nascentes do Pantanal, e, como o bioma, sofre com a seca e as queimadas, desde 2019.
Nem as recentes chuvas conseguiram extinguir por completo as queimadas no Alto Paraguai. O alerta dos climatologistas é de que o fogo veio para ficar. Para mitigar os impactos na biodiversidade e nas populações afetadas, novas políticas públicas precisariam ser construídas, segundos os pesquisadores.
“A seca extrema e a propensão aos incêndios serão o ‘novo normal’ da região”, explica o climatologista Carlos Nobre.
Pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, Nobre conta que “por anos, quando colaboramos para os primeiros relatórios técnicos do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, organizado pelas Nações Unidas), acreditávamos que alguns desses eventos demorariam, talvez só veríamos certas situações em 2040. Porém, já está acontecendo”.
“A seca sempre existiu nesses biomas. Há também uma razão meteorológica para explicar a atual estiagem no Pantanal e no Brasil Central. Já registramos isso antes. Mas, é a frequência desses fenômenos naturais que nos aponta para um planeta mais quente. São os extremos climáticos de mais intensidade e curta periodicidade a conexão do cenário atual e as mudanças climáticas”, diz o climatologista.
As morrarias da Província Serrana integram um relevo residual, com montes de cumes arredondados, testemunhas de milhões de anos de erosão e formadores de um cinturão de 400 quilômetros de extensão. Essa coluna de terras altas abraça a planície pantaneira, pelo norte, dando a peculiar forma de panela do bioma, com os rios do planalto correndo para as terras baixas inundáveis.
A paisagem é de uma beleza ímpar. São centenas de morros intercalados como ondas, desenhadas assimetricamente em um horizonte azul cercado por verde. A topografia foi descrita pelo geógrafo Aziz Ab’Sáber durante o Projeto Radambrasil (1982). No livro “Pantanal Paisagem de Exceção“, Ab’Saber apontou o local como um divisor natural das bacias hidrográficas Amazônica (rio Arinus e Teles Pires) e do Alto Paraguai (rios Cuiabá e Paraguai). Essa confluência de biomas faz da serra refúgio de espécies de fauna e flora da Amazônia, Cerrado e Pantanal.
Território quilombola
Os vãos desses morros foram escolhidos como morada por quilombolas há quase 300 anos. São oito assentamentos rurais e mais 21 comunidades tradicionais, entre pequenos produtores, quilombolas e morroquianos, como se autodenominam os pantaneiros que habitam essas regiões, segundo a Fundação Palmares. A luta contra os incêndios mudou a rotina de toda essa população.
O fogo nunca foi um inimigo para os quilombolas, mas um aliado. “Sempre usamos queimas pequenas na época da chuva pra fazer as roças de arroz, feijão, mandioca e banana. Mas tem que ter cuidado. Não é de qualquer jeito. Temos que ser responsáveis pelo meio ambiente. Já imaginou uma pessoa errada aqui, coloca a vida de 90 famílias em risco”, diz Paulo Luiz Bento, 51 anos, descendente dos pioneiros da comunidade morroquiana do Baixio, na área do Vão Grande, em Barra do Bugres. Os incêndios florestais severos mudaram a rotina na morraria.
“Há dez anos não pegava fogo aqui. Mas, eu mesmo, nunca tinha visto isso na minha vida. Esse fogo bravo. Dormimos há quinze dias, sempre olhando os focos e pensando; quando (o fogo) vai ‘pular’ o rio (Jauquara) e chegar aqui nas casas?”, diz Paulo Bento, enquanto o barulho do fogo estalando ao consumir a vegetação reverbera na sua cozinha, distante 100 metros do incêndio.
Na comunidade, muitas moradias ainda são de taipa (barro e madeira) e cobertas com palha da palmeira do babaçu. A proximidade das chamas faz do risco uma constante na vida dos morroquianos.
Entre janeiro e 20 de outubro, foram registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) 29.535 focos de calor nos três municípios da região (Barra do Bugres, Porto Estrela e Cáceres), segundo o satélite S-NPP da Nasa. Desde que as chuvas começaram, em 12 de outubro, já foram mais de 800 focos entre as bacias do rio Jauquara e o córrego Salobra, importantes contribuintes do rio Paraguai, o principal formador do Pantanal.
Solidariedade e falta de recursos
Sem treinamento e distantes das áreas urbanas, os quilombolas lutam contra os incêndios com folhas do babaçu e latas de água nas costas.
O único apoio que recebem vem da presença de uma unidade de conservação federal localizada na Província Serrana, a Estação Ecológica (ESEC) da Serra das Araras, criada em 1982 (Decreto Federal nº 87.222) pelo então secretário de Meio Ambiente nacional, Paulo Nogueira Neto.
A UC é uma das 25 federais dessa categoria no país e tem como finalidade a pesquisa e a preservação, tendo sido criada para proteger um ambiente único com um mosaico de diversas fitofisionomias de Cerrado e uma pequena Floresta Ombrófila Densa, um enclave de Floresta Amazônica conhecido como Furna do Café. Imagens do satélite Sentinel-2, de 13 de outubro, revelaram que o fogo devastou a estação quase que por completo, restando apenas a porção sul. Há 30 anos não era registrado um incêndio dessas proporções ali.
As imagens de satélite revelam que a Serra das Araras foi vítima de incêndios vindos de propriedades rurais a oeste da unidade. Desde setembro, o local tornou-se base para equipes do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e brigadistas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pela gestão da UC. A tragédia da estação virou a salvação da população local.
O Ministério do Meio Ambiente não respondeu aos questionamentos do InfoAmazonia sobre as ações na região, mas os moradores apontam que cerca de 70 homens atuam na morraria. Foram eles que socorreram e ainda ajudam os povos da Província Serrana.
“São anjos do fogo, se não fosse esse apoio, eu e os vizinhos teríamos perdido tudo. Entrei em desespero, quando vi o incêndio descer a serra. Por sorte o Marcelo Andrade [único analista ambiental da estação ecológica] nos orientou sobre como fazer os aceiros e trouxe sete brigadistas pra fazer a queima de controle [o contrafogo ou combate indireto às queimadas]”, explica Maria Ivanilza Magalhães Costa, professora e pequena produtora rural de Vila Aparecida, em Cáceres. “Eu sou viúva e preciso cuidar dessa terra sozinha. Aqui é a única herança da minha filha, menor de idade.”
“Nem imagino o que teria sido de nós. Foram dois dias de trabalho seguido sem dormir pra evitar que o fogo chegasse às nossas casas ou às estruturas construídas com tanto sacrifício, como as cercas e currais”, diz Maria Ivanilza.
A construção das linhas de defesa, os aceiros, realizadas no momento do combate nas propriedades foi uma das poucas vitórias na batalha contra as queimadas na região. “Fui com o meu trator e meus dois filhos com os abafadores e bombas [costais] que eles [ICMBio e Ibama] nos emprestaram. Chegamos a virar noite sem dormir. Se não fosse esse auxílio, principalmente com o contrafogo e combate indireto, umas dez propriedades, somente no Novo Oriente, teriam sido perdidas”, diz Natalino Dias de Carvalho, 61 anos, da comunidade Novo Oriente, em Porto Estrela.
Na terra dos morroquianos, no Baixio, a equipe de brigadistas do Prevfogo e do ICMBio também prestou apoio dez dias antes do fogo ressurgir. Mesmo com um intenso trabalho de combate, o vento e a seca trouxeram o incêndio de volta ao local. Por sorte, o fogo que cercava a morraria e as casas acabou na primeira chuva intensa, em 12 de outubro, embora ainda circunde as regiões vizinhas.
“Não imaginávamos que teríamos que enfrentar esse incêndio. O morro pega fogo sempre, mas apaga sozinho. Nossa mobilização aqui sempre foi pra proteger o rio Jauquara, ameaçado por hidrelétricas. Lutávamos pela água e agora precisamos combater o fogo que insiste em voltar o tempo todo”, diz Rafael Arcanjo Bento, de 36 anos, um dos líderes da comunidade Baixio.
Na porção da Província Serrana próxima a Cáceres, as queimadas seguem colocando em risco a fauna e a vida dos moradores. Em 9 de outubro, Sebastião Mendes, artista plástico que vivia na região, sofreu um infarto e morreu, após tentar apoiar sitiantes vizinhos no combate aos incêndios. Em setembro, outra fatalidade na Serra. O zootecnista Luciano Beijo, de 36 anos, faleceu após ter 100% do corpo queimado em um combate no morro do Facão, uma das porções mais ao sul da Província.
Pegos de surpresa pela continuidade da seca e um período de queimadas intenso, só restou aos povos tradicionais construírem novas estratégias.
“Criamos um grupo de Whatsapp para falar dos incêndios. Unimos vizinhos, prefeitura de Porto Estrela e o pessoal da Esec das Araras nos orienta ali sempre. Sem essa corrente de apoio, esse incêndio teria sido uma barbaridade”, diz Air Dias de Carvalho, produtor familiar da comunidade Novo Oriente, de Porto Estrela.
Futuro
Os climatologistas alertam que a mobilização nos locais afetados deve ser seguida por políticas públicas, em um mundo que precisa se adaptar às queimadas e secas cada vez mais constantes.
“Alguns ecossistemas já estão vulneráveis. O verão de 2019 foi fraco, choveu pouco e o de 2020 também. Foram esses dois verões fracos que aumentaram o risco de queimadas”, diz o climatologista José Antonio Marengo, colaborador do próximo relatório do IPCC (a ser publicado em 2021) e coordenador do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Inpe.
“É muito triste ver que já está acontecendo. A mudança climática é um processo de longo prazo. Esses verões relativamente fracos já são ingredientes que mostram como o clima mais quente afetará cada vez mais os ecossistemas e a população. Todos estão vulneráveis”, explica Marengo.