Um rio no leito de morte

Texto: Ahmad Jarrah e Juliana Arini
Fotos: Ahmad Jarrah
Reportagem realizada com apoio do Rainforest Journalism Fund em associação com o Pulitzer Center

A necropolítica que se instaurou no Brasil nos últimos anos atua em todos os campos da vida social, porém um dos tentáculos principais de ação está nas políticas ambientais, ou melhor, na completa dissolução delas. Mato Grosso, assim como os estados da região norte, estão no centro dessa disputa, como temos visto ocorrer na Amazônia, Pantanal e Terras Indígenas.

A morte rondou o Brasil em 2020, acumulamos milhares de óbitos, milhares de hectares desmatados, incendiados, outros milhares de terras indígenas, quilombolas e reservas invadidas, e o cenário catastrófico não foi diferente nos rios, em Mato Grosso foram toneladas de peixes mortos em uma sucessão de crimes ambientais cometidos pela Usina Hidrelétrica de Sinop nos últimos três anos.

Depois da instalação da UHE Sinop, o rio Teles Pires foi afetado drasticamente, ocasionando inundação de quilômetros de leito de rio e afetando inclusive a força da corrente, fazendo o pujante Teles Pires transformar suas fortes corredeiras em um cenário de águas calmas como uma lagoa em alguns locais, onde hoje se acumulam o lodo e dejetos despejados pela Usina no rio.

“Estão matando o Teles Pires, logo logo vai ser um rio morto, sem peixe e sem vida”, lamenta Donizete (58), mais conhecido como Zetti, pescador profissional que vive às margens do grande rio. “Já é a sexta vez que a Usina mata essa quantidade de peixes, eles falam que é normal, mas nunca vi ser normal matança de peixe” manifesta.

“Antes da construção dessas hidrelétricas os pesquisadores colocaram um chip em um pintado. O peixe subiu, foi nos rios Tapajós e Juruena voltou e passou a cachoeira das Sete Quedas, no Teles Pires”, relembra Darlisson Apiaka morador da Aldeia Três Marias, na Terra Indígena Apiká/Kayabi, afetada pelas Hidrelétricas São Manoel e Teles Pires. “Tinha muito peixe na região, era piraíba, jaú, matrinxã. Hoje, para pegar um peixinho qualquer temos que ir longe e ficar duas horas esperando.”

Um dos grandes impactos das quatro hidrelétricas nas região é na ictiofauna do rio Teles Pires. Em agosto de 2020, mais de 60 toneladas de peixes morreram agonizando em uma água barrenta, em maio já haviam sido 6 toneladas, no ano passado em três ocasiões alcançou mais de 50 toneladas. Em todas as vezes, várias equipes contratadas pela Usina de Sinop fizeram a coleta dos peixes e transportaram em tambores para serem enterrados no terreno da Usina.

A reposição dos peixes no rio feita pela UHE Sinop é ineficiente, “eles só soltaram um monte de abotoado, uma espécie de peixe que nem existia nessa bacia, porque é um peixe cascudo e barato, praticamente não tem valor comercial e até os coitados estão morrendo. Tá morrendo pacu, pintado, matrinxã, jaú, piau, tucunaré, jiripoca, até lambari, não tá escapando uma espécie de peixe, o rio ficou coberto de todas as espécies mortas por todos os lados”, desabafam os pescadores profissionais Irineu e Luiz Antônio, “Não dá mais nem pra tomar banho de tão poluída que está a água, e a gente vive da água”.

Até hoje a morte de peixes continua ocorrendo no rio Teles Pires e nenhuma medida efetiva foi tomada para solucionar o problema. Diante da inércia do poder público, os pescadores se mobilizaram e estão realizando diversas manifestações e protestos em Sinop, alguns deles inclusive tem sido ameaçados nas margens do rio.

O Ministério Público do Estado denunciou a hidrelétrica UHE Sinop (em fase de término, 401MW), como a responsável pelo crime ambiental. A companhia foi multada em 62 milhões de reais.

Os peixes encontrados tinham lesões variadas, como brânquias estouradas, lesões e bolhas pelos corpos, olhos, salteados e esbugalhados, a grande maioria morreu em choque por falta de oxigenação na água.

Por consequência dessa alta mortandade, muitos cientistas acreditam que a hidrelétrica já causou o desaparecimento de espécies nobres como a própria piraíba, o jaú e o matrinxã em grandes trechos do rio, e que também esteja provocando uma queda na qualidade da água.

O pesquisador e assessor do Ministério Público Estadual, o biólogo Francisco de Arruda Machado, explica que a alteração nas espécies do rio Teles Pires é um fato irreparável. “A situação é muito difícil, o rio Teles Pires virou um grande lago. O impacto sinérgico é reconhecido por todos. Não tem mais esse ambientes de corredeiras por onde esses animais migravam”, explica Machado.

O biólogo alerta que haverá uma mudança nas espécies do Teles Pires. “Com o estabelecimento do lago em determinado momento, o ambiente vai estabilizar e muitas espécies, principalmente de pequeno porte irão continuar existindo, mas vai florescer principalmente acarás, tucunarés, esses peixes que são efetivamente peixes de lagoas”.

“Quantas famílias não poderiam ser alimentadas por esses peixes que morreram?”, questiona Seu Irineu, afirmando que a fiscalização com o pescador é muito mais rigorosa, e o que ocorre com a Usina é o sentimento de impunidade. Os impactos desse desequilíbrio serão sentidos nos próximos anos e os efeitos sobre todo o ecossistema podem nunca mais retornar o rio Teles Pires como era antes.

Lucro Internacional

Ao longo dos 1457 quilômetros do rio Teles Pires foram erguidos quatro barramentos para geração de energia. Desde 2010 a paisagem da região sofre uma intensa transformação, as principais corredeiras e saltos de pedras do Teles Pires foram lentamente engolidos para produzirem algo como 3.2 GW hora. Esse energia é enviada ao Sistema Interligado Nacional (SIN), que a distribui para todo o Brasil segundo as demandas do Operador Nacional do Sistema (ONS).

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) é o regulador dessa estrutura, administrada pelo Ministério das Minas e Energia. Segundo a Aneel, não há nenhuma ligação entre as empresas responsáveis pelas quatro hidrelétricas do rio Teles Pires.

Há uma coincidência em todos os projetos. A composição acionaria destes revela empresas estatais, fundos internacionais e até o governo da França entre os que lucram com a energia dos rios da Amazônia.

A UHE Sinop foi construída pela Companhia Sinop Energia (CES), que em sua composição acionaria tem 51%  pertencente a estatal francesa EDF, a Electricité de France, controladora da Usina Termoelétrica Norte Fluminense S.A. Na UHE Colíder existe a intensa participação do Estado do Paraná, a portuguesa EDP e chinesa CGT Brasil (China Three Gorges Corporation) – a mesma que construiu a hidrelétrica de Três Gargantas na China – controlam a UHE São Manoel.

Energia é um investimento que rende bilhões por ano. Segundo os Contratos de Comercialização Energia no Ambiente  Regulado (CCEAR), um dia de operação das quatro hidrelétricas erguidas no rio Teles Pires pode chegar R$ 4,7 milhões – considerando a capacidade mínima instalada desses projetos.

Se considerarmos que na maioria dos dias estas operam com a capacidade firme instalada (um pouco mais de 50%), são aproximadamente R$ 2,3 milhões por dia. Todos os contratos de venda de energia no país duram em média de 20 a 35 anos de lucros contínuos garantido pelo governo federal.

A UHE Sinop foi contratada para vender energia a R$ 26 reais o MW/h, um preço mínimo, gerando 401 MW, sua capacidade máxima, o que pode chegar a 10.470 reais por hora. A UHE Colíder tem capacidade de 300 MW/H para e vende energia em média por R$ 77 reais, com até R$ 23.000 por hora.

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