Reportagem acompanhou cientistas que tentam estimar o tamanho da tragédia para a fauna e guarda-parques que dispõe alimentos para animais famintos.
Texto: Juliana Arini
Fotografias e aéreas: Bruna Obadowski
*Esta reportagem foi publicada originalmente na National Geographic Brasil
Com 28% de sua área consumida por queimadas em 2020, a vida no Pantanal está ameaçada. O fogo atingiu diretamente 4,1 milhões de hectares, segundo levantamento do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais, mas a dimensão desse impacto sobre a fauna ainda é incerto. Quantos animais morreram ou ainda irão morrer por efeito direto ou indireto do fogo é uma questão perseguida por vários pesquisadores que continuam trabalhando no Pantanal no período pós-fogo.
Muitos ninhais e áreas primordiais para alimentação de aves foram completamente devastados. Em Barão de Melgaço (MT), quinto município brasileiro mais afetado pelo fogo em 2020, o verde ressurge aos poucos. Apesar da aparente resiliência, a região está longe da tradicional abundância da fauna.
“Me assustei muito quando vim para cá depois do incêndio [em outubro]. Foi a primeira vez que vi o Pantanal em silêncio”, disse o biólogo Igor Pfeifer Coelho, doutor em ecologia e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em entrevista à reportagem. “Não há mais o intenso canto dos pássaros que tanto me marcou quando conheci o bioma.”
Coelho estuda a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Sesc Pantanal há 18 anos. Localizada em Barão de Melgaço, a 200 quilômetros da capital de Mato Grosso, a reserva foi uma das primeiras unidades de conservação a serem atingidas pelos incêndios que assolaram o bioma.
O objetivo inicial de sua pesquisa era estimar a população de onças-pintadas. Antes, 30 indivíduos eram monitorados, mas as queimadas o fizeram mudar o foco. Agora, um outro monitoramento vem sendo feito com apoio da UFRGS, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Museu Nacional e Fundação Oswald Cruz (Fiocruz) para descobrir quantos animais sucumbiram ao incidente.
“Começamos a acompanhar o incêndio sem muita preocupação, pois todo ano há fogo no Pantanal. Mas as imagens de satélite e as fotos dos animais agonizando nos mostraram que esse foi um evento de outras proporções.”, diz Coelho. “Voltamos pra região porque precisamos colocar um número nisso.”
Os pesquisadores usam um aplicativo de sensoriamento remoto desenvolvido pela Fiocruz. A metodologia é similar a de outras catástrofes, como derramamento de óleo no oceano. A proposta é ir a campo e contar carcaças para chegar a uma estimativa.
São 20 pesquisadores que realizam uma varredura em uma área de 107,9 mil hectares, correspondente a 1% do Pantanal Mato-grossense. Eles investigam 200 parcelas de amostragem e fazem a contagem sobre o número de animais mortos encontrados. As questões investigadas envolvem quais espécies morreram, quantos indivíduos e quais áreas foram as mais impactadas.
“É complicado, não é um censo. A nossa população são as carcaças e muitos dos que já morreram não estão mais lá, pois foram removidos por animais sobreviventes que os devoraram ou foram degradados pelo ambiente”, diz Coelho.
O estudo converge com outras pesquisas de Mato Grosso do Sul e da região da rodovia Transpantaneira, em Mato Grosso, coordenadas pelo pesquisador Walfrido Moraes Tomas, da Embrapa Pantanal. “Apesar das metodologias diferentes, ambas devem convergir em resultados sobre os impactos do fogo no Pantanal”, explica Cristina Cuiabália, bióloga e gerente de pesquisa, meio ambiente e educação ambiental da RPPN Sesc Pantanal, do parque Sesc Baía das Pedras e do Hotel Sesc Pantanal.
Sem alimento
Uma das primeiras constatações dos pesquisadores que atuam na região é que os impactos do fogo na fauna não ocorrem apenas no momento do incêndio. Muitos animais acabam perdendo fontes de alimento e sucumbem por inanição ou asfixiados. O cenário apocalíptico pode ser percebido durante uma breve caminhada pela RPPN. Em uma área elevada, conhecida como Tanque Verde, restos mortais da fauna pantaneira são encontrados dispostos quase que em uma fileira perfeita.
A primeira ossada avistada pela reportagem parecia com a de um porco-do-mato, mas era uma anta, provavelmente filhote. Vários outros corpos são encontrados em um raio de dez metros. A paisagem remete ao imaginário do que seria um campo de guerra. Embaixo de uma árvore, a pele de um enorme jacaré repousa.
“Muitos morreram de fome, não pelo fogo. Encontramos muitos animais exaustos no trabalho de socorro à fauna”, conta Cuiabália. “O incêndio primeiro atingiu uma área ao norte da RPPN, que conseguimos combater, mas depois veio outra frente do sul. Tentamos a todo custo preservar o centro da reserva, mas não conseguimos. Os animais acabaram correndo de outras regiões para essa área já queimada no dia 2 de agosto. Não havia mais focos de fogo, porém quase não restou alimento.”
A violência do fogo deixou marcas nos troncos das árvores. O verde que ressurge no solo ainda não foi capaz de modificar o tom marrom acinzentado que predomina por quilômetros. A reserva, a maior unidade de conservação privada do Brasil, teve 98 mil hectares queimados, o equivalente a 91% do território. As áreas não atingidas foram as baías e áreas às margens do rio Cuiabá, onde a fauna ficou mais concentrada.
Os bosques de acuri são uma das fontes de sustento que devem demorar para se recuperar dos incêndios. Dentro da RPPN, o fogo atingiu uma área de cinco quilômetros quadrados coberta por acuris, uma palmeira que oferece frutos para aves como araras, tucanos e papagaios. Os acuris queimados neste ano só devem ressurgir em março de 2021, isso se as árvores resistirem aos danos causados pelo fogo.
“Não sabemos como será o comportamento da flora. São vários eventos de perturbações – primeiro uma seca histórica e depois o fogo”, avalia Cátia Nunes da Cunha, professora doutora em ecologia da UFMT e pesquisadora associada do Centro de Pesquisa do Pantanal (CPP). “Algumas espécies são mais resistentes, outras não vão responder tão rapidamente e podem demorar anos para florir novamente. O futuro comportamento da palmeira acuri é um dessas incógnitas.”
Mobilização
Para reduzir os danos e dar apoio à fauna, Cristina Cuiabália coordena um programa na RPPN que oferece alimento aos sobreviventes desde outubro. São 60 nichos de comida com cochos com água, frutas e ovos. Levam-se três dias para percorrer todos os locais. A disposição dos alimentos é mapeada por aplicativos de georreferenciamento.
“Mesmo com chuvas, que chegaram no início de novembro, não podemos acreditar que está tudo bem e que já há alimento”, diz Cuiabália. “Não sabemos ao certo como as árvores irão reagir e se haverá frutos. Por isso, nos empenhamos em distribuir cerca de três toneladas de alimentos por semana.”
Os insetos também se beneficiaram da ação. Era quase impossível se aproximar de um dos cochos de água – muitas abelhas rondavam o local. “No início, os enxames eram até mais intensos. Era nítido que elas [as abelhas] também estavam desesperadas por comida e água. Com o fim das queimadas, percebemos que o fogo atingiu toda a vida no Pantanal”, explica a bióloga.
Na região da Transpantaneira, em Poconé (MT), a 200 km de Cuiabá, a alimentação dos animais perdura com apoio de alguns voluntários. “Podemos dizer que o Pantanal está em silêncio, no sentido de bichos e de pessoas apoiando. Muito do socorro que antes ocorria acabou”, afirma Sandro Lucose, professor do Instituto Técnico Federal de Mato Grosso e voluntário do projeto É o Bicho.
O grupo foi um dos últimos a deixar a Transpantaneira, já no final de novembro. “Choveu, mas não estava tudo bem porque precisávamos esperar que as árvores tivessem frutas. E não é porque esverdeou que já há frutas – tudo que colocamos era consumido rapidamente”, diz Lucose.Al
ém da oferta de alimentos, os centros emergenciais de apoio à fauna continuam ativos. Na pousada Rio Mutum, também em Barão de Melgaço, o centro é coordenado pela ONG Ampara Silvestre. Apesar das chuvas, o local ainda recebe animais feridos pelos incêndios e trata os que não conseguiram se recuperar e voltar à vida livre na natureza.
Um filhote de anta muito debilitado pelo fogo é um dos que ainda precisam de cuidados. “Recentemente, também encontramos uma sucuri muito machucada, apesar de já ter passado tanto tempo do fim do pior dos incêndios”, conta Jorge Aparecido Salmão, veterinário da Ampara. “No centro também há outros animais como um ouriço, outros dois filhotes de antas e um cateto.”
Segundo o veterinário, parte do trabalho de atendimento à fauna não será desmobilizado. “Além da região de Barão de Melgaço, haverá uma base fixa no parque Baía da Pedras. Esses dois locais ficarão continuamente atendendo à fauna.”
Ninhais
Além da perda de alimento, importantes berçários de aves foram atingidos. No ninhal Porto da Fazenda, às margens do rio Cuiabá e a 60 km do centro de Barão de Melgaço, a paisagem revela marcas de um incêndio tão intenso quanto o que atingiu a RPPN do Sesc Pantanal.
As lembranças das queimadas seguem nas memórias dos pantaneiros. “As labaredas do fogo lambiam alto e pulavam de uma margem a outra do rio. As chamas rodearam as casas”, conta o pescador Antônio Bento da Silva, 60 anos, conhecido como seu Totó. “Foi tudo queimado, do ninhal até aqui. Por sorte não perdemos nossos entes.”
Morador da comunidade da Correa d’água, seu Totó é vizinho do ninhal, um dos maiores do Pantanal. A região ficou conhecida internacionalmente como uma das áreas mais ricas em avifauna do bioma, fundamental para reprodução de garças-brancas, cabeças-secas, maguaris, colhereiros e outras aves.
Na década de 1990, o ninhal Porto da Fazenda foi estudado pela ornitóloga holandesa Brunhild Angelika Luzia Juncke. A pesquisadora dedicou sua vida para promover o turismo de natureza na região.
Relatório de 2003 estimou entre 600 e 700 ninhos de biguá e cerca de 200 de anhingas, ou biguatingas, em um raio de 5 km do ninhal. Essas aves ocupam os ninhos conhecidos como pretos entre janeiro e junho. Os ninhos brancos são ocupados por garças, colhereiros e cabeças-seca, entre outras aves, de agosto a setembro, no auge da seca e das queimadas.
Os moradores de Barão de Melgaço afirmam que a seca que assola o Pantanal desde 2019 pode ter ajudado a evitar uma tragédia maior. “O ninhal quase não se forma há uns dois anos. Aqui, a seca já chegou antes do fogo”, diz seu Totó. “Na verdade, tudo mudou desde a construção da hidrelétrica do rio Manso [entre 1998 e 2000], mas foi ficando pior. O peixe foi diminuindo.”
Na região do ninhal, que mesmo sem a abundância do passado deveria abrigar centenas de aves para reprodução, a paisagem é desoladora. As antigas ilhas cercadas de colônias de nidificação e cantos de aves foram tomadas por um tom amarronzado e um imperioso silêncio. É possível ver alguns restos de ninhos queimados, porém há pouquíssimas aves que sobrevoam entre os galhos enegrecidos.
A paisagem da Lagoa Bonita, que margeia os ninhos, choca quem conheceu o local em seu apogeu. O barqueiro e guia Waldileno Xavier da Silva, que chegou a atuar com a pesquisadora Angélika Jüncke, tem dificuldade em encontrar a trilha. Ao chegar no que seria a lagoa, um pequeno círculo de água reúne algumas garças. “Queimou tudo mesmo. Não imaginava que teria sido tão intenso. Nunca imaginei ver essa região assim, sem vida”, diz da Silva.
Estudadas por 30 anos pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT), as colônias de nidificação são regiões frágeis e fundamentais para a biodiversidade. “As aves são dispersoras de sementes e acabam alimentando os peixes. É um ciclo de vida interligado, um depende do outro”, explica a pesquisadora Cátia Nunes da Cunha, do CPP.
A proteção do ninhal é uma atribuição da Sema-MT, regulada pela Lei Estadual 038/95 e o código ambiental de Mato Grosso. Mas, segundo a secretaria, as ações na região foram interrompidas há quase oito anos. Moradores contam que nenhuma equipe do corpo de bombeiros ou de qualquer outra brigada atuou na defesa do ninhal Porto da Fazenda, nem mesmo no auge do fogo, entre agosto e setembro, período que chega a reunir mais de 15 mil aves, principalmente de espécies migratórias da América do Sul.
“Fomos nós mesmos que cuidamos do fogo, ficamos mais focados nas casas. Foi impossível impedir que as chamas pulassem o rio”, conta seu Totó.