Quilombolas são vacinados em Mato Cavalo

Texto: Juliana Arini 
Fotografias: Ahmad Jarrah

Olhos brilhantes, sorriso e carteira de vacinação na mão. Foi assim que Alídio José da Silva, Seo Lídio, de 70 anos, recebeu a primeira dose da vacina contra Covid-19, na quarta-feira (7). A imunização foi fruto de muita luta das associações quilombolas mato-grossenses e nacionais. 

Grande parte da população tradicional do Pantanal é formada por descendentes de africanos. Eles foram trazidos há duzentos anos para o interior do Brasil para serem escravos nas lavouras de cana-de-açúcar e nos garimpos de ouro. Seo Lídeo vive em Mata Cavalo, uma das 28 comunidades, com mais de 40 mil afrodescendentes, do Alto Pantanal – um divisor de águas entre as bacias do rio Paraguai e Guaporé.   A região quilombola guarda remanescentes  de dois importantes biomas do Brasil, o Pantanal e a Amazônia.

No ginásio de esporte da Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, em Nossa Senhora do Livramento, a 40 quilômetros da capital mato-grossense, os moradores da comunidade de Mata Cavalo de Baixo passaram a manhã sendo imunizados.  Durante a tarde de quarta (7), os moradores de Mata Cavalo de Cima receberam a vacina. Na sexta-feira (9) foi a vez  das regiões da Estiva e Mutuca. 

 A imunização é um alívio para quem enfrentou todas as mazelas da pandemia em meio a fome e o medo. A Covid-19 trouxe uma onda de sofrimento há muito não vista na região. 

Moradores de Mata Cavalo durante a imunização no Ginásio de esporte da Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, em Nossa Senhora do Livramento. Fotografia tirada em abril/2021. Ahmad Jarrah.
Moradores de Mata Cavalo durante a imunização no Ginásio de esporte da Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, em Nossa Senhora do Livramento. Fotografia tirada em abril/2021. Ahmad Jarrah.
Moradores de Mata Cavalo durante a imunização no Ginásio de esporte da Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, em Nossa Senhora do Livramento. Fotografia tirada em abril/2021. Ahmad Jarrah.

 “Lembrei muitas vezes de quando começamos a lutar por  nossa terra na década de 1990. Tivemos mortes e muitos doentes com essa  covid. A doença chegou ano passado bem na época das queimadas (agosto), quando estávamos sofrendo com o fogo e perdendo os roçados. Depois veio a seca e hoje estamos sem água”, diz Alídio José da Silva, de 70 anos, seo Lídio.

Para o ancião, existe uma conexão clara entre o desmatamento e a falta de chuvas. “Depois que houve o grande fogo nas matas da Amazônia (2019) a chuva acabou. Agora eu pego água no poço, quase 200 metros de casa. Carrego lata tanto para beber quanto para tomar banho.”,   diz.  

Alídio José da Silva, Seo Lídio, de 70 anos, a espera da imunização. Fotografia tirada em abril/2021. Ahmad Jarrah.

A comunidade quilombola de Mata Cavalo também guarda as nascentes do rio Bento Gomes, um dos grandes contribuintes da bacia e responsável pelo abastecimento de muitas comunidades e cidades pantaneiras. As águas das regiões onde vivem os quilombolas e povos indígenas do Pantanal integram as nascentes da bacia do Alto Paraguai (BAP). Segundo o Instituto SOS Pantanal, a região contribui com  até 70%  de todas as cheias das áreas alagadas do bioma.

A agricultura familiar é a principal fonte de sustento dos quilombolas de Nossa Senhora do Livramento. “Tiramos o sustento das roças de milho e mandioca. Nós produzimos nossa comida. Essa seca nos custou muito. Tem família que hoje depende muito das cestas básicas doadas”, explica Maria de Fátima da Silva, de 56 anos. 

Além da fome, a pandemia isolou os quilombolas.  Tanto o governo  estadual quanto as prefeituras mudaram a dinâmica do transporte público durante a quarentena restritiva para reduzir  a propagação do novo coronavírus. As linhas de ônibus que circulavam na região foram  limitadas a apenas um horário fixo. Quem não tem carro, os mais pobres, foi mais afetado. 

“Agora dependemos de reunir até três pessoas toda vez que precisamos ir até a cidade comprar qualquer coisa. São R$ 25 reais para ir e R$ 25 para voltar. É muito para nós que dependemos do auxílio (os R$ 250 reais dado pelo governo federal) para viver”, explica Maria de Fátima.

Medicina tradicional 

Foi o conhecimento da cura com ervas do cerrado que minimizou os danos da Covid-19 entre os quilombolas. Um dos líderes religiosos de Mata Cavalo disse que não parou de trabalhar desde que começou a pandemia, prestando socorro aos que pediam ervas e garrafadas para as dores e febre desencadeadas pela infecção do coronavírus. 

“Teve dia que não dormimos. Muita gente veio buscar ajuda com as ervas que temos. Não que seja possível curar a Covid, mas usamos os banhos e chás para minimizar os efeitos da doença.”, explica Sizenando Carmo Santos, 62 anos, o Nezinho, como também é conhecido o líder de um dos últimos terreiros de Umbanda de Mata Cavalo, como são chamados os centros de religião africana da região. 

Sizenando Carmo Santos, 62 anos, também conhecido como Nezinho. Fotografia tirada em abril/2021. Ahmad Jarrah.
Sizenando Carmo Santos, 62 anos sentado em seu quintal a espera da imunização. Fotografia tirada em abril/2021. Ahmad Jarrah.

“Apesar do trabalho de cura que realizamos e de nunca termos cobrado por nada, ainda enfrentamos preconceito religioso. Mas continuo ajudando quem posso. O governo dorme e o povo sofre. É triste, a cura só com a vacina. Rezo todo dia pra Deus dar essa vacina para todos, crianças velhos, todos.”, diz.

Segundo a assessoria do Ministério Público Federal o órgão investiga as denuncias de preconceito religioso, mas ainda há nenhum procedimento sobre o tema. 

Medo

Além do temor da covid-19, alguns quilombolas precisaram vencer receios pessoais e a desinformação. O tratorista Sebastião de Almeida Rodrigues,  de 31 anos, precisou de incentivo da comunidade para aceitar a vacina, depois de alguns argumentos dos agentes de saúde, acabou cedendo. 

“Uma vez tomei uma vacina no braço e fiquei muito ruim.  Mas sei que teve gente que morreu dessa doença aqui, melhor vacinar”, diz enquanto recebia a primeira dose.

Sebastião de Almeida Rodrigues,  de 31 anos, recebendo incentivo da comunidade para vacina.
Sebastião de Almeida Rodrigues,  de 31 anos, recebendo a primeira dose da vacina em Mata Cavalo. Fotografia tirada em abril/2021. Ahmad Jarrah.

Lutar contra a desinformação também fez parte da campanha que reuniu os quilombolas. “Tivemos casos de infecção, mas conseguimos evitar que a situação ficasse descontrolada entre os quilombolas. Porém, a luta contra informações falsas sobre efeitos da vacina foi importante. Nas duas cidades próximas de Mata Cavalo,  como Nossa Senhora do Livramento e Poconé, os casos de coronavirus só aumentam. É um alívio ver, finalmente, os quilombolas sendo vacinados”, explica Edson Batista, 51 anos, agente de saúde da comunidade. 

Comunidade durante imunização em Mata Cavalo. Fotografia tirada em abril/2021. Ahmad Jarrah.

A cobiçada caixa com cerca de mil vacinas destinadas aos afrodescendentes do Pantanal foi fruto de muita luta das associações. “Fizemos um ação conjunta com a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) para inserir os quilombolas na lista de vacinação prioritária. O problema é que a comunidade do entorno não compreende a necessidade de sermos vacinados”,  explica Arlete Pereira Leite, presidente da Associação dos moradores de Mata Cavalo de Baixo, que enquanto vistoriava a lista dos quilombolas imunizados precisava explicar aos  dois moradores vizinhos da região que estes não poderiam serem vacinados desta vez.  “Muitos querem furar a fila e receberem também a vacina contra Covid. É difícil, mas tem pessoas que não reconhecem nossas vulnerabilidades ”, diz.

Direitos 

Os quilombolas mato-grossenses imunizados fazem parte dos 7% da população  quilombola inserida do  Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, do Ministério da Saúde. A campanha prevê imunizar 1,133 milhão de pessoas. Mas, segundo dados da Conaq, existem  cerca de 6,3 mil comunidades quilombolas no Brasil.  O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística contabiliza a existência de 5.972 localidades quilombolas, presentes em mais de 30% dos municípios brasileiros. 

Cerca de  5.069 quilombolas foram diagnosticados com o novo coronavírus, destes 224 morreram pela doença. Mato Grosso é um dos estados com maior número crescente de casos de contaminação pela Covid-19, e Cuiabá a terceira cidade do país em número de mortes, segundo dados da Fundação Oswald Cruz- Fiocruz.  

* Essa matéria foi produzida com apoio do Rainforest Journalism Fund em associação com o Pulitzer Center.

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