A hecatombe da fauna pantaneira

No Pantanal mato-grossense, voluntários se mobilizam para salvar animais sobreviventes à passagem do fogo e ao castigo da seca; Logística é o grande desafio

Texto e fotos: Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski

Depois das proporções dos incêndios no Pantanal terem chocado o mundo, em agosto e setembro de 2020, sendo considerado por especialistas a maior tragédia ambiental das últimas décadas no bioma, neste ano, com os focos em menor quantidade e em pontos específicos, um outro grande desafio é enfrentado para o combate ao fogo e no salvamento de animais silvestres na região norte do pantanal mato-grossense, a logística.

Ainda que os números sejam inferiores ao ano anterior, a preocupação é impedir uma hecatombe da fauna pantaneira, e agravar ainda mais a situação dos animais que sobreviveram à devastação do último ano. De acordo com o artigo “Pantanal está pegando fogo e só uma agenda sustentável pode salvar a maior área úmida do mundo”, publicado em junho deste ano, os incêndios no bioma em 2020 afetaram pelo menos 65 milhões de animais vertebrados nativos e 4 bilhões de invertebrados, com base nas densidades de espécies conhecidas. A área é de excepcional biodiversidade, abrigando cerca de 650 espécies de aves, 98 de répteis e 159 de mamíferos.

“O que ocorre no Pantanal não é como um machucado, uma ferida que você estanca e cicatriza. É mais como um câncer, uma doença crônica e progressiva.

Gustavo Figueroa, biólogo.

São sucessivos impactos ambientais que assolam a maior planície alagada do mundo. A fauna pantaneira, que sobreviveu ao maior incêndio da história, no ano passado, agora enfrenta a maior seca dos últimos 47 anos com seus ciclos de cadeias alimentares e toda a flora necessária para garantir a vida no bioma, comprometidos. Para se ter ideia, em agosto, o nível das águas do rio Paraguai, principal formador do Pantanal, chegou a 62 centímetros, menor nível desde 1965, evidenciando a crise hídrica como uma realidade latente. Para pesquisadores, o cenário poderá provocar o desaparecimento de algumas espécies.

“Neste ano, a gente continua vendo muitos animais feridos, muitos animais mortos. Às vezes parece que estamos enxugando gelo. A gente salva dois animais, mas tem outros trezentos mortos. Ontem resgatamos uma sucuri, para ela fez diferença”, relata Gustavo Figueroa, biólogo atuante no Instituto Socioambiental da Bacia do Alto Paraguai SOS Pantanal, uma das organizações da sociedade civil na linha de frente do combate ao fogo.

Gustavo faz referência ao resgate de uma sucuri encontrada queimada no Parque Encontro das Águas, maior refúgio de onças-pintadas do mundo, onde o fogo chegou. Em 2020, o Parque teve 85% de sua área total queimada em apenas três dias.  Segundo o Instituto Centro Vida (ICV), os incêndios destruíram uma área de 92 mil hectares do parque, que tem 108 mil hectares, provocando consequências inestimáveis.

Batizada como Highlander, a sucuri de aproximadamente 2,5 metros, foi encontrada em uma das operações de combate ao fogo e varredura realizada pela SOS Pantanal e Grupo de Resgates de Animais em Desastres (GRAD). Muito debilitado e com graves queimaduras, o animal precisou percorrer um grande percurso para receber os devidos cuidados. Uma hora de barco rio abaixo, e outros 350 quilômetros de carro até chegar ao Sesc Pantanal, onde receberia os cuidados da Ampara Silvestre.

Além do Sesc Pantanal,  o hospital veterinário da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) também é a base de apoio para receber animais feridos e resgatados durante os incêndios no pantanal mato-grossense, a depender da gravidade. Este ano, o Posto de Atendimento a Animais Silvestres (PAEAS) instalado em 2020, ainda não havia sido montado.

Fonte: Arquivo pessoal Instagram Ampara Silvestre. Setembro/2021.

A sucuri foi medicada e recebeu todo o tratamento de analgesia, além de passar pelo banho de chá de camomila, que é hidratante e contribui muito para o processo de recuperação das queimaduras da serpente. Segundo a veterinária Taís Valeria de Souza, que está conduzindo o tratamento, o animal já reagiu muito bem: “Ele foi de zero a dez, ficou ativo e começou a nadar!” reforçou via rede social.

São quase quatro horas de carro na estrada de chão, apenas para ir. O tempo que poderíamos estar salvando outros animais.

Relata Figueroa.

Segundo ele, a logística é um dos grandes desafios enfrentados. “No pantanal, ir a qualquer lugar exige uma logística muito grande. Barco, carro, combustível e conhecimento do terreno”,  reforça. 

O desafio de logística mencionado por ele é imposto a todos, seja no combate aos incêndios ou no resgate aos animais. Apenas para chegar em Porto Jofre, no pantanal norte, onde ocorre a saída de barco para o Parque Estadual Encontro das Águas, é preciso percorrer cerca de 100 quilômetros de asfalto saindo da capital do Estado de Mato Grosso, Cuiabá, e outros 150 quilômetros de estrada de chão cruzando a Transpantaneira. O combate e o resgate não ficam centralizados, o que demanda o traslado contínuo durante todo o dia, por terra e pelo rio, o que torna o combustível um material fundamental para o trabalho, além da hospedagem e alimentação, que demanda um custo elevado na região.

Carla Sássi, médica veterinária que há dez anos atua no GRAD, também relata a dificuldade de logística enfrentada pelo grupo para o resgate de animais na região. “Hoje o fogo está muito longe, cerca de  uma hora de barco rio acima. Para chegar lá só de barco”, relata.

Com a baixa do rio, as embarcações maiores encontram dificuldade para navegar, tornando o traslado de materiais de primeiros socorros ainda mais restrito. “Não dá para levar material grande. A medicação para campo é para atender qualquer tipo de animal queimado. O hospital de campanha fica praticamente impossível de montar nesses locais”, reforça. Na urgência de combater o fogo e salvar os animais, embaixo do sol escaldante, equipes se apertam e dividem pequenas embarcações para chegar ao parque. A alimentação é compartilhada por muitos, que chegam a beber de 7 a 15 litros de água por dia.

Além da sucuri, a reportagem acompanhou o resgate de uma anta de aproximadamente 300 quilos que já estava sendo monitorada há cinco dias pela equipe do GRAD. O animal foi encontrado no quilômetro 100 da rodovia Transpantaneira, uma área bastante devastada pelo fogo e sem nenhuma fonte de alimento e água. Sedada, foi realocada para um lugar seguro. 

Muitos animais recorrem ao socorro em fazendas próximas, no entanto, outros não têm o mesmo destino. No mesmo quilômetro da transpantaneira onde a anta foi resgatada, um macaco-prego foi carbonizado pelo fogo enquanto tentava fugir. Em posição fetal, ele parecia ter perdido a vida tentando se proteger do fogo.

Na região, muitos mamíferos de pequeno porte, répteis e anfíbios também perderam a vida com a passagem do fogo. É o caso de quatis, serpentes e sapos encontrados carbonizados. Os animais de grande porte, em sua maioria, conseguem escapar, pelas características dos incêndios e estratégias de combate neste ano. Enquanto isso, os animais fossoriais, ou seja, que tentam se esconder ao invés de fugir, são os que mais morrem.

Enquanto brigadistas do ICMBio combatem um foco no quilômetro 95, um sapo agoniza ao tentar pular as chamas. Segundo o biólogo Figueiroa, com a alta temperatura, os anfíbios tendem a morrer primeiro por respirarem pela pele. “Ressecam mais rápido e não conseguem fugir”. Ainda segundo ele, são muitas vezes negligenciados, apesar de importantes bioindicadores. “A carcaça quase nunca é achada e, consequentemente, quase nunca contabilizada”, reforça.

Os impactos aos animais têm proporções diferentes. Os que não morrem atingidos diretamente pelo fogo, terão, certamente, sua trajetória afetada. Muitos enfrentam fome, sede, desorientação, estresse ou mesmo se machucam tentando fugir dele. É o caso da anta que, ferida, foge do fogo com o filhote. Os que sobrevivem, ainda correm risco, seja por falta de alimento ou água nas áreas devastadas. Porém, o desequilíbrio está instalado, uma vez que há migrações, e a fauna se realoca em regiões que já estavam estáveis, podendo desestabilizá-las.

REFLEXOS DA SECA HISTÓRICA NO PANTANAL

A forte estiagem que atinge o pantanal mato-grossense provocou a seca de diversos córregos, riachos, corixos, reduzindo drasticamente a área alagada, fenômeno que vem causando impacto na fauna. Com a escassez de água, é possível encontrar no trajeto da Transpantaneira e em seu entorno, animais mortos em corixos secos, reflexo da escassez de recursos. Das 120 pontes na Transpantaneira, por exemplo, apenas 10% possuem água. 

Em um dos corixos é possível observar um casal de ariranhas. Elas, que vivem predominantemente na água, estão presas numa poça que restou de um corixo. Quase sem peixes e a mais de 20 km do próximo local alagado, muitos temem que esses animais possam não aguentar tanto tempo, uma vez que não conseguem se deslocar em terra. Em uma das noites, elas receberam uma porção de tuviras trazidas de Porto Jofre pela equipe do GRAD.  A seca tem deixado muitas vítimas pelo caminho.

Nas últimas décadas, segundo o Sistema de Monitoramento e Alerta de Inundações e Secas no Pantanal, o bioma vem sofrendo alterações no ciclo hidrológico devido às mudanças ou variabilidade climáticas, a uma intensificação do uso do solo e dos recursos hídricos no planalto adjacente. 

As secas têm acompanhado o cenário proposto pelos cientistas para as mudanças climáticas e as consequências já colocam o bioma Pantanal em alerta máximo. Segundo a publicação do Relatório Seis do The Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), Mudanças Climáticas e possíveis alterações nos biomas da América do Sul, publicado em 2007, a previsão para o Pantanal é de um aumento de quase 2 graus na temperatura média da região, até 2050. 

A falta de água traz um alerta iminente para muitos pesquisadores. Para Figueiroa, caso as perdas não sejam revertidas drástica e rapidamente e os incêndios não diminuam, o Pantanal corre sério risco de virar um deserto. “As mudanças climáticas estão aí para demonstrar”, reforça. Em uma das análises de cobertura vegetal feita pela SOS Pantanal, é possível verificar o pico das cheias desde o início do monitoramento do INPE, em 1985. São dados que correlacionam os picos de cheia dos anos de 1988, 2018 e 2020.

Fernando Rodrigo Tortato, Biólogo, doutor em ecologia e conservação da biodiversidade e pesquisador associado à ONG Panthera, não descarta a possibilidade da desertificação do pantanal. No entanto, ainda faltam pesquisas para afirmar com certeza tal transformação. Segundo ele, é fato que se o pantanal não tiver água ele vai se converter em outro tipo de ambiente, mas ainda não é possível afirmar que seja deserto, um ambiente semi-árido ou um cerrado, mas que para manter sua biodiversidade e sua abundância de fauna e flora características ele depende dos ciclos hidrológicos.

No entanto, Tortato pondera que o pantanal está preparado para essas oscilações entre grandes cheias e grandes secas, e a fauna sabe se adaptar a cada período. Esse ciclo natural só não pode ser interrompido pelo fogo, esse sim maior causador de impactos irreversíveis.

Prevenção e trabalho contínuo no Pantanal é um eixo defendido por muitos.  O fogo ocorre todos os anos, e a tendência de anos mais secos e quentes indicarem um cenário de incêndios mais intensos para o futuro, colocando em risco a biodiversidade e toda a vida no bioma. O papel mais importante, segundo Tortato, é o trabalho de conscientização da sociedade, porque a maioria dos incêndios são provocados por ações humanas. Em 2020, mais de 90% dos focos no Pantanal se iniciam por ação humana, sendo poucos iniciados por ações naturais, como raios. 

Enquanto a chuva cai levemente, muitos animais seguem sobrevivendo, seja pela ajuda de voluntários, como de seus próprios instintos, se adaptando, insistindo, tentando se proteger, algumas vezes gritando por socorro, para que possam garantir sua existência e voltar a cantarolar toda a rica diversidade que é o pantanal mato-grossense.

MULHERES NO FRONT:  CONTRA O FOGO E PELOS ANIMAIS

Salvar animais silvestres, promover a educação ambiental e colaborar no combate aos incêndios são objetivos que conectam mulheres de diferentes partes do Brasil no pantanal mato-grossense. Elas fazem parte das profissionais que atuam na linha de frente no pantanal desde a catástrofe ambiental que assolou o bioma em 2020.

Daniella Pereira Fagundes de França, Bióloga, ecóloga, zoóloga, professora e pesquisadora faz parte de um dos grupos que também se juntam às demais na linha de frente no combate ao fogo e amparo aos animais neste ano. Ela mora atualmente em São Paulo e faz parte do coletivo de mulheres Chalana Esperança, nascido como uma resposta mais emergencial em meio ao desastre no pantanal ano passado. Trata-se de um grupo de mulheres biólogas que resolveram unir forças para dar assistência às comunidades locais que são constantemente atingidas pelo fogo. 

Neste ano, Daniela  colabora, sobretudo, na logística. Além disso, também é brigadista e não teme se a tarefa for entrar no fogo e combatê-lo. “Trabalho onde tem predominância masculina, tem muito preconceito, acabam achando que não somos capazes de fazer o trabalho, questionando e nos testando o todo tempo” reforça ela ao ser indagada sobre os desafios da labuta no pantanal. Ainda segundo ela, já ouviu que estaria no pantanal representando a beleza feminina. 

“Não estou representando a beleza. Estou representando a força, o trabalho e a coragem. De que a beleza me servirá neste trabalho?” reforça.

Daniela é mãe de duas crianças e reforça, com o seu trabalho, a necessidade de promover uma ruptura no preconceito relacionado às mães que precisam trabalhar longe de seus filhos. A dupla jornada de trabalho é a realidade de diversas mulheres no mundo, uma herança histórica devido ao fato da passagem das mulheres do ambiente familiar, espaço privado, para o mercado de trabalho, espaço público, mas sem a saída ou a divisão das tarefas domésticas e/ou responsabilidades familiares com os homens. 

Com Daniela, está a estudante de biologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Sthefany Gonsalves Teixeira. Segundo ela, poder atuar neste momento no pantanal é uma rica jornada enquanto estudante e que, além disso, fortalece a atuação feminina frente aos desafios, independentemente de gênero. 

Ambas fazem parte do leque de mulheres que atuam nas ciências biológicas com atividades no Pantanal. Segundo o artigo “Ciências Biológicas: mais mulheres, menos preconceito?”, publicado em 2018, há certas diferenças na capacidade das mulheres quando se trata de pesquisa e trabalho de campo. Segundo o Centro de Educação Profissional Esperança (CEPES), a presença feminina nas ciências biológicas é de 63,02% contra 36,88% da presença masculina. 

A veterinária Carla Sássi atua no Grupo de Resgate de Animais em Desastre (GRAD). Ela se deslocou de Minas Gerais para colaborar, mais uma vez, com o resgate dos animais atingidos e ameaçados pelo fogo. Ela, que é coordenadora de campo, faz frente aos inúmeros resgates e salvamento de animais feridos pela Transpantaneira, onde o fogo já passou.

Inspirada no trabalho de Sássi, a estudante de medicina veterinária da UniSociesc, Rafaela Letícia Zluhan, também faz parte do número de mulheres cada vez mais presentes no trabalho de campo. Assim como Carla, seu foco de trabalho é animais silvestres.  No meio do fogo, ao  lado de brigadistas, ela faz a varredura no Parque Estadual Encontro das Águas, prática que afina a busca por possíveis resgates.

Elas compõem um nicho de profissionais mulheres que atuam no pantanal durante os incêndios, onde os homens estão em maior número, sobretudo entre brigadistas e militares. O crescimento de atuação destas profissionais é evidente. Atualmente, o país conta com 118 mil médicos veterinários em atividade, dos quais 58,4 mil, ou 49%, são mulheres. Até os anos 1980, elas representavam apenas 20% da categoria no país. 

Além de veterinárias e biólogas, a linha de frente também conta com bombeiras e brigadistas. Em campo, no combate ao fogo, a reportagem encontrou bombeiras e brigadistas fortemente engajadas no combate direto às chamas. Conforme dados oficiais do site do Corpo de Bombeiros, atualmente são 2.720 militares em atividade. Desse número, 236 são mulheres, ou seja, apenas 8,6% do total. Segundo Brasil de Fato, o número de brigadistas mulheres na prevenção e combate ao fogo aumentou em 2021, concomitantemente ao crescimento da formação de brigadas. 

Enquanto houver a necessidade em colaborar com a manutenção da maior planície alagável do mundo, seja na educação ambiental, combate ao fogo ou amparo aos animais, as mulheres continuarão somando forças e exercendo seus os trabalhos sem distinção de gênero, mesmo nas funções que exigem mais força física e em condições extremas.

Brigadistas da SOS Pantanal e Panthera, biólogas da Chalana Esperança e Veterinária do GRAD durante os trabalhos na Parque Estadual Encontro das águas. Setembro/2021.
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