Projeto “planta água” para reverter escassez hídrica no Alto Pantanal Mato-grossense

Texto: Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski
Fotografias: Ahmad Jarrah/ A Lente

Conhecido por sua grande quantidade de água, que inunda as planícies e forma uma paisagem deslumbrante, o Pantanal – maior  planície inundável do mundo, apresenta uma outra realidade, muitas vezes desconhecida: a falta de acesso à água potável. Essa situação é vivida por centenas de famílias, principalmente em assentamentos rurais, comunidades e escolas do campo no pantanal. Muitas vezes, as famílias chegam a caminhar por quilômetros até alcançar uma fonte de água própria para o consumo.

A dificuldade se dá, principalmente, porque o único meio de garantir acesso à água potável na região do Alto-Pantanal é a perfuração de poços artesianos. No entanto, esse recurso possui valor elevado, tornando- se inacessível para a maioria das famílias que residem na região. Os moradores que conseguem viabilizar o poço artesiano, precisam perfurar uma centena de metros até alcançar uma fonte de água. Segundo relatos de moradores, para além da dificuldade financeira, a fonte pode não ser duradoura, exigindo novas perfurações.

Diante da escassez hídrica, especialmente nas fortes secas que chegam no período da estiagem, o engenheiro agrônomo Samir Cury criou o projeto de tecnologia social “Plantando Água em Comunidades do Alto Pantanal Mato-grossense”. A iniciativa recentemente conquistou diversos prêmios ambientais, incluindo do Ministério do Meio Ambiente. A justificativa, segundo o engenheiro, é de que comunidades inteiras estão sendo privadas do acesso à água de qualidade, impactando a saúde e dificultando ainda mais a renda e a cidadania para essas famílias. 

Assim, a implementação de técnicas que visam combater o desabastecimento hídrico de forma sustentável é imprescindível. Neste contexto, o uso de tecnologias sociais de baixo impacto, como as empregadas no uso de barragens de infiltração (barraginhas). Nosso objetivo é dar segurança hídrica a agricultores familiares e alunos de escolas do campo, ampliando a renda das atividades produtivas na agricultura familiar e redução do êxodo rural, além da melhoria do rendimento escolar e nutricional em áreas de fronteira com a Bolívia. Para além do social, as barraginhas também são forma de recuperação ecológica, pois reabastecem os lençóis freáticos locais, garantindo a permanência de nascentes de corpos d’água, áreas de interesse para a conservação da biodiversidade e processos ecossistêmicos regionais, como no pantanal.

Samir Cury

A Lente acompanhou de perto a Jornada Pela Água de algumas famílias atendidas pela iniciativa. O projeto faz uso de duas técnicas distintas, a construção de pequenas barragens para acúmulo de água da chuva e hidratação de nascentes e lençóis freáticos e também o sistema de coleta da água da chuva instalado com calhas nos telhados, que acumulam a água em uma cisterna instalada pelo projeto.

JORNADA PELA ÁGUA

A marcha estradeira conduziu Demétrios e sua família até as margens da rodovia BR-364, onde viveu acampado por quatro anos, com outras dezenas de famílias de trabalhadores rurais sem terra. Dentre tantas coisas, o acesso à água potável era a principal dificuldade. Durante meses tiveram que contar com doações de caminhão pipa para encher a caixa d’água improvisada no barracão de lona.

A inacessibilidade à água prosseguiu mesmo com a implantação do assentamento rural, em 2005. Apesar de terem conquistado o direito à terra, ainda lhes faltava água. Demétrios conta que a primeira fonte que encontrou foi uma pequena mina, de onde conseguia tirar, com muita paciência, apenas dez litros de água por dia. Após dois anos vivendo com o mínimo, construiu um poço, “furei no braço sete metros, sem manilha nem nada”.

Cansado dos esforços sem grandes resultados, Demétrios abriu uma represa, que facilitou o acesso à uma quantia maior de água, porém trouxe uma série de problemas de saúde. A água da represa sofria contaminação pelos animais o que a torna imprópria ao consumo humano. Segundo Maria Glória, esposa de Demétrio, a água do poço era muito densa e salobra.

Tava com problema nos rins e o médico disse que era água, que era pra tomar só água mineral. Mas como que vou comprar água mineral aqui? E quando veio esse projeto de água da chuva, que comecei a tomar ela, nunca mais tive problema. O filtro de barro limpa tudo, aí tá pronto pra beber, fazer café, cozinhar.

Maria Glória

Atualmente a água da represa atende apenas a lavoura, onde plantavam maxixe e hoje cultivam pimenta de cheiro, que levam de carro para vender na cidade. A agricultura familiar sustentável é a principal fonte de renda das famílias.

Em 2012, o assentamento recebeu um projeto piloto de cisternas para coleta de água da chuva, inspirado por uma iniciativa bem sucedida desta tecnologia sustentável no nordeste brasileiro. Desde então, cinco famílias do assentamento Nossa Senhora Aparecida, em Várzea Grande, resolveram um problema que aflige mais de cem mil pessoas em Mato Grosso, quase um bilhão no mundo: a falta de acesso à água própria para o consumo humano.

Um pantaneiro sem água

O poconeano José Ito, pantaneiro acostumado com as águas abundantes de sua terra natal, também dividiu a mesma aflição que Demétrios, desde a chegada à beira da estrada até a conclusão do processo de reforma agrária que criou o assentamento. Ele e sua esposa, Maria, tiveram muita dificuldade para conseguir água, que demandava grande esforço.

Ito conta que caminhava quase um quilômetro com o carrinho de mão transportando o máximo de galões que conseguia de uma pequena fonte no meio da mata. Sua esposa, dona Maria, já estava cansada de transportar baldes de água na cabeça, de um lado a outro, quando surgiu este projeto das cisternas de coleta de água da chuva.

Desde criança a gente bebia água da chuva no pantanal, nós fomo acostumado assim

José Ito

Assim descreve Ito, ao relembrar como foi o acesso à agua durante sua infância no Pantanal. Ito já possuía um sistema rústico de coleta de água da chuva na sua casa, antes da chegada do projeto. Atualmente, além do consumo, a água abastece as plantações.

Você quer provar?

Me ofereceram a água como um desafio para testar sua qualidade e, após experimentar alguns copos e cafés, acredito que apenas paladares mais apurados saberiam diferenciá-la de uma água mineral qualquer. É cristalina, não possui cheiro nem sabor, o que se espera de uma água própria ao consumo humano, bem diferente do que chega às nossas casas na cidade. Como a cisterna é enterrada, a água está sempre fresca, e segue assim até sair do filtro de barro e abastecer a geladeira.

O sistema de coleta

O projeto de coleta de água da chuva por cisternas foi implantado pela primeira vez no nordeste brasileiro, e trazido para Mato Grosso pelo engenheiro do Incra, Samir Curi, sendo efetivado através de uma parceria com o Ministério Público. Além do assentamento, já foi levado a outras comunidades rurais, atendendo inclusive escolas e outros serviços públicos.

O sistema é simples. Inicialmente é feita a limpeza do telhado e descartada a primeira meia hora de chuva. Depois, a água passa a ser coletada a partir de calhas que a direcionam por um filtro para eliminar as grandes impurezas, antes de chegar à cisterna, que tem capacidade para oito mil litros e fica enterrada a um metro e meio de profundidade. Lá acontece a terceira etapa de limpeza, com adição de cloro. A última etapa, antes do consumo humano, é o filtro de barro, considerado o mais eficiente sistema do mundo. Toda a instalação custa cerca de cinco mil reais.

Para além da questão da água, a iniciativa faz parte de uma série de Tecnologias Sociais Sustentáveis, instrumentos que garantem a sustentabilidade sem degradar o meio ambiente. Em tempos de mudanças climáticas, o projeto revela sua parcela de colaboração no cuidado com o meio ambiete. “ A gente não gradeia, não derruba árvores, a gente cuida da mata nativa, porque sem ela não tem chuva”, diz Demétrios.

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