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Acervo da fotógrafa Vania Toledo (1945-2020), consagrada pelos registros da cena cultural brasileira, chega ao Instituto Moreira Salles 

O acervo inclui imagens produzidas ao longo de toda a carreira da fotógrafa, incluindo retratos de Ney Matogrosso, Cazuza, Caio Fernando Abreu, Rita Lee, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Andy Warhol, além de registros de peças teatrais, da noite paulistana, entre outros destaque

Com assessoria IMS
Foto de capa: Vânia Toledo / Acervo IMS

Com sua Yashica a tiracolo, Vania Toledo (1945-2020) costumava percorrer os corredores de teatros e clubes noturnos, registrando as personagens marcadas de suor e purpurina que circulavam pelos locais. Em seu estúdio, também retratou nomes centrais da música e do teatro nacional, convidando-os a posar e se abrir para suas lentes. Essa proximidade com as pessoas fotografadas e com as cenas que captava — “meu vício é gente”, declarava em entrevistas — caracterizam a obra e carreira de Vania.

Constituído majoritariamente ao longo de sua trajetória na imprensa, na noite e em seu estúdio particular, o acervo da fotógrafa acaba de ser adquirido pelo Instituto Moreira Salles. A coleção é composta por cerca de 250 mil imagens, sobretudo retratos em preto e branco, além de reportagens em jornais e revistas, livros e documentos, como credenciais de imprensa. Com a aquisição, o IMS passa a ter direito de fazer exposições e publicações para divulgar a obra de Toledo. Já os direitos autorais permanecem com Juliano Toledo, filho e herdeiro da fotógrafa.

No acervo, há retratos de Gal Costa, Ney Matogrosso, Caio Fernando Abreu, Rita Lee, Cazuza, Pelé, Milton Nascimento, José Celso Martinez Corrêa e Caetano Veloso, além de registros da vida noturna de São Paulo nos anos 1980Outro destaque é a série pioneira de nus masculinos que deu origem ao livro Homens: ensaio (1980), com personagens famosos e menos conhecidos. 

Nascida em 1945 na cidade de Paracatu (MG), Vania mudou-se na década de 1960 para São Paulo, onde cursou ciências sociais na USP e passou a trabalhar na área de educação da Editora Abril. Até os 30 anos, fotografava apenas de forma amadora. No fim dos anos 1970, decidiu se dedicar à profissão e iniciou sua carreira no jornal Aqui São Paulo, onde se tornou responsável pela coluna de festas. 

A partir de então, passou a colaborar com diferentes jornais e revistas do Brasil e do exterior, como VogueInterviewClaudiaVejaIstoÉFolha de S.PauloO Estado de S. PauloTime e Life. Em 1981, abriu seu próprio estúdio, Studio Salto Alto, na capital paulistana, que funcionava num sobrado no bairro dos Jardins, em São Paulo, onde pôde aprofundar seu trabalho como retratista, reunindo personalidades da música, do cinema e das artes visuais para sessões de fotos imersivas. 

No acervo, há muitas imagens feitas nos bastidores do teatro. Ela começou sua carreira fotografando gratuitamente atores que frequentavam o circuito da praça Roosevelt e precisavam de materiais de divulgação. Posteriormente, documentou espetáculos marcantes da história do teatro brasileiro, encenados durante a ditadura militar, como a montagem de Macunaíma. Também retratou astros como Marília Pêra e Raul CortezMarco Nanini, Ney Latorraca, Irene Ravache, entre vários outros, desenvolvendo uma intensa relação com a cena teatral, que marcaria toda sua trajetória.

Em paralelo ao trabalho nas redações, na década de 1980, Vania documentou seu próprio entorno, especialmente as festas que frequentava na cena underground no centro de São Paulo. De maneira espontânea, registrava as pessoas que se entregavam nas pistas de dança, com roupas e comportamentos que questionavam os padrões sociais. As fotos trazem flagras dessas personagens, captando o ritmo e a energia de um ambiente, marcados por purpurina e música disco. Em entrevista para a revista ZUM, a fotógrafa comenta as imagens: “Eu gostava da noite, de dançar, de festa. A fotografia tem muito a ver, no meu caso, com o olhar e a liberdade de ação. Eu fazia da pista de dança o meu estúdio. Tinha uma espontaneidade que eu adorava. […] Eram personagens muito interessantes, muito libertárias.”

 Foto: Rita Lee. Coleção Vânia Toledo / Acervo IMS

O acervo traz também fotos realizados para a indústria fonográfica. Vania assinou capas de discos consagrados, como Refestança, de Gilberto Gil e Rita Lee, e  Televisão,dos Titãs. Outro artista muito fotografado é Ney Matogrosso, com quem Vania cultivou uma estreita amizade. 

É também de sua autoria a famosa foto de Cazuza abraçado ao escritor Caio Fernando Abreu, em 1988. Vania fotografou também a escritora Cassandra Rios, que teve mais de 30 livros censurados durante a ditadura. Outro destaque são as imagens que clicou em Nova York, no fim dos anos 1970, onde registrou ícones como Andy Warhol e Truman Capote na lendária discoteca Studio 54, em Manhattan.

A coleção inclui ainda a famosa série Homens: ensaio (1980), primeiro livro publicado por Vania e um dos mais importantes de sua carreira. Para o ensaio, a fotógrafa convidou amigos para posarem nus diante de suas câmeras, invertendo as posições de artista e modelo, tradicionalmente ocupadas por pessoas do gênero masculino e feminino, respectivamente. A série inclui retratos de nomes como Caetano Veloso, Roberto de Carvalho e Ney Matogrosso.
 

Gilberto Gil. Coleção Vânia Toledo / Acervo IMS

No IMS, o acervo de Vania se soma a outros, como o de David Drew Zingg, Madalena Schwartz e Otto Stupakoff, que registram a efervescência cultural e o questionamento dos padrões de comportamento no país. 

O coordenador de fotografia contemporânea do IMS, Thyago Nogueira, comenta a incorporação da coleção: “É uma honra trazer ao IMS acervo tão importante para a história da fotografia brasileira. Vania foi ao mesmo tempo uma cronista irreverente da noite paulistana, franqueando acesso aos momentos de intimidade de artistas e personalidades de toda classe, e uma retratista rigorosa, que usou seu carisma transbordante para construir a cumplicidade com que registrou boa parte da cena cultural brasileira. Em vez de uma observadora distante, era uma fotógrafa implicada em seu trabalho.

Ainda há muito que estudar em seu arquivo, mas é notável como a informalidade e a descontração se transformaram em estratégias para registrar – e viver – de dentro as mudanças culturais e comportamentais dos anos 70, 80 e 90. O acesso à efervescência das festas noturnas, a inversão de papéis de gênero e mesmo a adoção de uma máquina fotográfica amadora fazem parte da revolução visual promovida por uma artista libertária.” 

Juliano Toledo, filho da fotógrafa, ressalta a importância da aquisição do acervo pelo IMS: “Minha mãe foi uma fotógrafa além do seu tempo. Imagina, uma mulher em plena ditadura militar fazer um livro com ensaios de homens nus. Ela não tinha pudores! Ela conseguia captar a essência do ser humano que estava sendo registrado pelo seu clique. Como ela sempre dizia: ‘O meu vício é gente’. Agora seu legado vai poder ser apreciado pelas próximas gerações.”

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