Texto: Juliana Arini
Fotografias: Ahmad Jarrah
Olhos brilhantes, sorriso e carteira de vacinação na mão. Foi assim que Alídio José da Silva, Seo Lídio, de 70 anos, recebeu a primeira dose da vacina contra Covid-19, na quarta-feira (7). A imunização foi fruto de muita luta das associações quilombolas mato-grossenses e nacionais.
Grande parte da população tradicional do Pantanal é formada por descendentes de africanos. Eles foram trazidos há duzentos anos para o interior do Brasil para serem escravos nas lavouras de cana-de-açúcar e nos garimpos de ouro. Seo Lídeo vive em Mata Cavalo, uma das 28 comunidades, com mais de 40 mil afrodescendentes, do Alto Pantanal – um divisor de águas entre as bacias do rio Paraguai e Guaporé. A região quilombola guarda remanescentes de dois importantes biomas do Brasil, o Pantanal e a Amazônia.
No ginásio de esporte da Escola Estadual Tereza Conceição de Arruda, em Nossa Senhora do Livramento, a 40 quilômetros da capital mato-grossense, os moradores da comunidade de Mata Cavalo de Baixo passaram a manhã sendo imunizados. Durante a tarde de quarta (7), os moradores de Mata Cavalo de Cima receberam a vacina. Na sexta-feira (9) foi a vez das regiões da Estiva e Mutuca.
A imunização é um alívio para quem enfrentou todas as mazelas da pandemia em meio a fome e o medo. A Covid-19 trouxe uma onda de sofrimento há muito não vista na região.
“Lembrei muitas vezes de quando começamos a lutar por nossa terra na década de 1990. Tivemos mortes e muitos doentes com essa covid. A doença chegou ano passado bem na época das queimadas (agosto), quando estávamos sofrendo com o fogo e perdendo os roçados. Depois veio a seca e hoje estamos sem água”, diz Alídio José da Silva, de 70 anos, seo Lídio.
Para o ancião, existe uma conexão clara entre o desmatamento e a falta de chuvas. “Depois que houve o grande fogo nas matas da Amazônia (2019) a chuva acabou. Agora eu pego água no poço, quase 200 metros de casa. Carrego lata tanto para beber quanto para tomar banho.”, diz.
A comunidade quilombola de Mata Cavalo também guarda as nascentes do rio Bento Gomes, um dos grandes contribuintes da bacia e responsável pelo abastecimento de muitas comunidades e cidades pantaneiras. As águas das regiões onde vivem os quilombolas e povos indígenas do Pantanal integram as nascentes da bacia do Alto Paraguai (BAP). Segundo o Instituto SOS Pantanal, a região contribui com até 70% de todas as cheias das áreas alagadas do bioma.
A agricultura familiar é a principal fonte de sustento dos quilombolas de Nossa Senhora do Livramento. “Tiramos o sustento das roças de milho e mandioca. Nós produzimos nossa comida. Essa seca nos custou muito. Tem família que hoje depende muito das cestas básicas doadas”, explica Maria de Fátima da Silva, de 56 anos.
Além da fome, a pandemia isolou os quilombolas. Tanto o governo estadual quanto as prefeituras mudaram a dinâmica do transporte público durante a quarentena restritiva para reduzir a propagação do novo coronavírus. As linhas de ônibus que circulavam na região foram limitadas a apenas um horário fixo. Quem não tem carro, os mais pobres, foi mais afetado.
“Agora dependemos de reunir até três pessoas toda vez que precisamos ir até a cidade comprar qualquer coisa. São R$ 25 reais para ir e R$ 25 para voltar. É muito para nós que dependemos do auxílio (os R$ 250 reais dado pelo governo federal) para viver”, explica Maria de Fátima.
Medicina tradicional
Foi o conhecimento da cura com ervas do cerrado que minimizou os danos da Covid-19 entre os quilombolas. Um dos líderes religiosos de Mata Cavalo disse que não parou de trabalhar desde que começou a pandemia, prestando socorro aos que pediam ervas e garrafadas para as dores e febre desencadeadas pela infecção do coronavírus.
“Teve dia que não dormimos. Muita gente veio buscar ajuda com as ervas que temos. Não que seja possível curar a Covid, mas usamos os banhos e chás para minimizar os efeitos da doença.”, explica Sizenando Carmo Santos, 62 anos, o Nezinho, como também é conhecido o líder de um dos últimos terreiros de Umbanda de Mata Cavalo, como são chamados os centros de religião africana da região.
“Apesar do trabalho de cura que realizamos e de nunca termos cobrado por nada, ainda enfrentamos preconceito religioso. Mas continuo ajudando quem posso. O governo dorme e o povo sofre. É triste, a cura só com a vacina. Rezo todo dia pra Deus dar essa vacina para todos, crianças velhos, todos.”, diz.
Segundo a assessoria do Ministério Público Federal o órgão investiga as denuncias de preconceito religioso, mas ainda há nenhum procedimento sobre o tema.
Medo