Texto e fotos: Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski
“Era março de 2013, a gente tava colhendo palha pra fazer vassoura, quando veio um avião e deu um voo baixo, daqui a pouco veio um cheiro forte e eu gritei ‘É veneno!’
O episódio narrado por Creuza Silva Dutra, de 54 anos, aconteceu em março de 2013, no pré-assentamento Lote 10, no município de Nova Guarita, em Mato Grosso. Na ocasião, um fazendeiro que tentava inviabilizar a estada dos camponeses na área, contratou uma aeronave para lançar veneno sobre as famílias. “Esse aqui lembra disso, era criança. Quantos anos vc tinha?” pergunta Creusa a Douglas, que tinha 11 anos na época. Hoje com 19, ele recorda que vomitou bastante e teve muita dor de cabeça.
Pré-assentados desde 2005, ambos estão, nesta semana, acampados em frente à sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em Cuiabá, junto com dezenas de representantes de outras quatro comunidades que, assim como eles, lutam pelo direito à terra em que vivem.
A ação ocorreu simultaneamente com outro evento, a I Semana da Resistência Camponesa, realizado pela Comissão Pastoral da Terra de Mato Grosso (CPT-MT). As famílias se organizaram em grupos e aproveitaram o contexto do tema em debate para apresentar suas reivindicações.
O que moveu as famílias de diversos municípios a organizarem um acampamento em Cuiabá é a contínua exposição à violência no campo, como o caso da aeronave. Na ocasião do atentado, Creuza e outros cinco adultos foram intoxicados por agrotóxicos, que também foram despejados sobre as casas, plantações e atingiram inclusive a água. Seu esposo foi socorrido de ambulância e seis crianças foram levadas para atendimento médico.
Os moradores do Lote 10 perderam toda a lavoura de mandioca, milho e hortaliças, tiveram que mudar de local e não puderam utilizar nem a água durante alguns dias. Um boletim foi registrado na delegacia do município de Nova Guarita (MT) e terminou com um fazendeiro e dois funcionários detidos, e liberados sob pagamento de fiança.
O ato de violência foi sucedido por vários outros no assentamento no qual vivem 12 famílias. Outro grave atentado foi registrado em 2017, quando um agricultor foi vítima de tortura e cárcere privado. Ao reagir em defesa do agricultor, as famílias foram ameaçadas.
“Pode atirar, é pra quebrar a perna e os braços”, relata Creuza que acompanhou de perto a situação e viu um companheiro ter sua moto alvejada pelas balas.
Os responsáveis pelos atentados foram membros de uma família de fazendeiros ligados à grilagem de terras na região. No mesmo ano, diversos relatos e boletins de ocorrências foram lavrados na Polícia Militar e Civil do Estado de Mato Grosso a respeito do caso. As famílias chegaram a entrar, através da Defensoria Pública, com uma “Cautelar Atentado”, onde conseguiram uma liminar que determinou aos agressores uma multa diária no valor de mil reais caso não deixassem de se abster “de praticar qualquer ato de alteração do estado de fato da área em litígio”.
Esta tensão, no entanto, não é um caso isolado de violência a que estão submetidas as famílias acampadas, pré-assentadas e assentadas. Assim como Creuza, milhares de pessoas seguem vivendo sob violência enquanto buscam o direito à terra, garantido em Constituição por meio da Lei No. 4.504/64.
CONFLITOS NO CAMPO
No dia do agricultor, celebrado no último 28 de julho, o Governo Federal publicou nas redes sociais, por meio da página da Secretaria de Comunicação, a imagem de um caçador com um rifle nas costas, simbolizando um jagunço. A publicação, que estimula a violência de fazendeiros e invasores contra famílias camponesas, indígenas e quilombolas que vivem da terra, ocorre no momento em que é registrado o maior número de conflitos no campo desde 1985.
Segundo o artigo publicado por Roberto Malvezzi , “as Pastorais do Campo sabem bem por qual razão o governo federal coloca um jagunço armado em homenagem ao Dia do Agricultor”. Segundo ele, é assim que o agronegócio trata o pequeno agricultor.
Um exemplo do ciclo de violência gerado em decorrência dos conflitos por disputas de terra, são os ataques à Comissão Pastoral da Terra, que por ser uma importante aliada aos povos do campo, acaba não ficando imune às agressões. A Comissão, que tem uma história marcada pelo martírio e pela entrega, possui agentes pastorais sob forte ameaça e alguns pertencentes ao programa de proteção de Direitos Humanos.
Somente em 2020, o centro de documentação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dom Tomás Balduíno (CEDOC), sistematizou 1.608 ocorrências de conflitos por terra, envolvendo mais de 170 mil famílias. As ocorrências referem-se a casos de pistolagem, expulsão, despejo, ameaça de expulsão, ameaça de despejo, invasão, destruição de roças, casas, bens. Conflitos vivenciados na pele por Creuza e sua família.
Hoje, a Comissão Pastoral da Terra oferece suporte para que as famílias sigam buscando seus direitos mesmo diante dos desafios.
“Isso dá um sentimento de profunda angústia, de tristeza, mas como dizia Dom Pedro Casaldáliga, somos lutadores de uma causa perdida, se não tiver espiritualidade que nos movimente pela esperança a gente larga tudo e desiste”.
Luís Cláudio da Silva, membro da Comissão Pastoral da Terra.
I SEMANA RESISTÊNCIA CAMPONESA
Os dados apresentados fazem parte do caderno “Conflitos no Campo Brasil 2020”. A publicação, que reúne dados sobre os conflitos e violências sofridas pelos trabalhadores e trabalhadoras do campo brasileiro, bem como indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais, teve a 35ª edição lançada na última terça-feira (27).
O lançamento da edição no estado faz parte da I Semana Resistência Camponesa, realizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT-MT), em Mato Grosso. Na abertura, nomes expoentes apresentaram um panorama geral sobre os dados do caderno, refletindo e expondo a realidade de violência e conflitos no campo.
Segundo o padre Luís Cláudio, os conflitos são fruto da ausência de políticas públicas efetivas de Reforma Agrária, considerando que a reforma não é somente assentar, mas criar condições reais para que o trabalhador consiga viver no campo.
“Quanto maior a ausência maior o conflito”, enfatiza.
Ainda segundo ele, as regras criadas recentemente, que passam a ser parte das reivindicações das famílias que vivem na área rural, dificultam o processo de permanência no campo como parte de um projeto político. “O INCRA é instrumentalizado para ficar a serviço do agronegócio”, afirma ao se referir sobre a falta de investimento em programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), por exemplo.
Encampada pela Comissão Pastoral a Terra, com o apoio do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (FORMAD), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Via Campesina, Cena Onze, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Coletivo Proteja Amazônia (CPA) e Fórum de Direitos Humanos e da Terra (FDHT), a semana foi inspirada no Dia Internacional da Agricultura Familiar, data que marca a resistência daqueles que vivem e sobrevivem da terra.
Como parte da programação, foi protocolado o manifesto intitulado “Violência, grilagem e omissão do INCRA no Mato Grosso”, que traz uma série de denúncias de violência e a omissão do órgão no estado. O protocolo foi assinado por Baltazar Ferreira de Melo, voluntário da Comissão Pastoral da Terra, membro atual da coordenação. Além do Fórum de Direitos Humanos e da Terra (FDHT) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT-MT), outras 70 entidades assinam o documento.
Ainda durante a abertura do evento, a arte potencializou os debates travados pelos dados apresentados no caderno e tornou-se um importante instrumento de conscientização. A resistência da vida no campo foi representada por meio de uma intervenção artística do Grupo Cena Onze com participação dos camponeses acampados.
Sob o resquício de sol antes da chegada da frente fria, o cortejo reuniu atores e camponeses que caminharam em procissão em frente ao INCRA, até chegarem a uma instalação feita com crucifixos de madeira, simbolizando os camponeses vitimados pela violência. Inspirado na passagem “Funeral de um Lavrador” do poema Morte e Vida Severina, obra-prima escrita pelo poeta João Cabral de Melo Neto, durante o cortejo, entoaram frases de luta e da vida no campo.
Em poucos minutos, apresentaram um resumo dos desafios cotidianos da luta campesina. Segundo o caderno Conflitos no Campo Brasil 2020, no mesmo ano foram registrados 18 assassinatos em conflitos no campo no Brasil, sendo que destes, 15 aconteceram na Amazônia Legal, o que corresponde a 83% do total.
HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA NO CAMPO
Compondo a mesa de abertura da I Semana Resistência Camponesa, Nilda Silva Correia, 39 anos, reforça a importância dos debates levantados pelo caderno. Segundo ela, que há dez anos mora no acampamento Renascer, em Nova Guarita (MT), a violência sofrida pela ação de grileiros e pistoleiros é desumana.
“É um processo doloroso, mas que a cada dia reforça a nossa esperança de acesso à terra”.
Nilda, mãe de quatro filhos, não mede esforços quando o assunto é a luta para garantir um pedaço de terra. Vivendo apenas da renda fixa do Bolsa Família e um cartão do governo de alimentação de R$ 150,00, seu objetivo é ter a terra para que possa produzir e criar os filhos com dignidade. Além dela, outras 70 famílias moram no mesmo acampamento e vivenciam situações parecidas.
Durante sua fala, mais de 25 camponeses e camponesas se reconheceram nas pautas. Acampados em frente ao INCRA, reivindicam do Estado e das demais instituições públicas a garantia do direito às terras onde vivem.
Diante da pressão ocasionada pelo acampamento, um representante de cada grupo foi convidado para uma reunião com o novo superintendente do INCRA em Mato Grosso, o coronel da Polícia Militar, Marcos Vieira da Cunha, nomeado em novembro de 2020 pela ministra da agricultura, Tereza Cristina. O militar é uma indicação política do presidente Bolsonaro e não possui formação na área ou experiência com questões agrárias, o que tem dificultado o diálogo.
As famílias acusam o INCRA de se tornar um instrumento a favor do latifúndio, a serviço de grandes fazendeiros e de grileiros de terras, deixando de atender as famílias camponesas que sobrevivem da agricultura familiar em detrimento do grande agronegócio.
No gabinete, decorado com um quadro do presidente Jair Bolsonaro, o coronel pediu que a imprensa não acompanhasse a reunião e se retirasse após as fotografias. Ao final, os representantes relataram que não ouviram nenhuma proposta ou solução, dessa forma decidiram permanecer acampados.
Milton da Costa Neves, 48 anos, é um dos camponeses sentados à beira do meio fio, e que está a ouvir atentamente a fala de Nilda, durante a abertura da I Semana Resistência Camponesa. Ele, que veio para a capital em busca de um posicionamento do Incra , se torna a esperança das 100 famílias que também vivem no pré-assentamento Boa Esperança, no município de Novo Mundo (MT), desde 2005.
“Tá todo mundo lá [no pré-assentamento] esperando notícia”, diz ele esperançoso.
O sonho de trazer a família, que atualmente reside em Colíder, é o que o faz montar a lona preta e aguardar o quanto for preciso por um retorno possível para a documentação de sua terra.
“Muitas pessoas já falaram pra eu desistir, já são 15 anos e não desisti”.