Texto e fotos: Ahmad Jarrah
O pantanal mato-grossense guarda uma cultura que corre por entre séculos e deságua em um fragmento atemporal da história, onde uma comunidade aprofunda suas raízes no município de Poconé, e resiste nessa brecha do tempo e do voraz progresso, que rasgou suas terras em busca do eldorado. Cruzaram épocas em que seus corpos foram-lhe roubados através do trabalho e da dominação do colonizador, que suas vidas eram negociadas como almas mortas, dentro da lei, e caminharam sobre a memória de seus antepassados na necrópole subterrânea que lhes eram incumbidas como destino.
O sincretismo religioso que compôs as sangrentas veias híbridas da América Latina, criou uma cultura com tradições únicas, que cultiva a fé cristã à sua maneira, implodia alguns valores, miscigenava outros, dissolvia a hierarquia piramidal papal em uma grande roda indígena, exaltava mestres em vez de padres, abandonava o frígido canto gregoriano para o intenso e xamânico cururu, embalados pela viola de cocho, ganzá e mocho, pequenos frutos híbridos desse processo. São Benedito descia do altar, ia para a rua levado por uma procissão, que canta e vela sua fé e sua história de luta.
A comemoração a São Benedito saiu das igrejas e foi para os festeiros, nos quintais encontrou morada para fincar seu mastro. Os fogos de artifício alertam os fiéis do início do rito, tão logo os jovens conduzem o mastro pelas ruas de terra do bairro, carregando nos ombros a tradição dos anciões. Da bebida servida como parte do rito, a concentração de dezenas de pessoas em uma pequena sala celebrando o santo à luz das velas, ao transe da música.
Os festejos cortam o dia, e quando as pernas começam a arrastar o rasqueado no salão, o almoço é preparado à maneira tradicional, com o gado do quintal.
Os pequenos se orgulham de empunhar o laço, usar o chapéu e brincar o dia todo naquilo que, para os pais, é o trabalho. Tocam o gado, curtem o couro, riscam o ganzá, e com o curioso olhar acompanham tudo ao redor, principalmente os mais velhos.
Aos poucos algumas famílias retornam às suas casas, mas a energia de quem fica leva a festa madrugada adentro. A adoração do festejo não termina até ressoar o último acorde da viola de cocho, até que os fiéis entreguem todo o tempo daquele dia à adoração, fazê-lo esticar, estender mais e mais, alargar a brecha que os fazem perpetuar.