Texto e Fotos: Ahmad Jarrah
As extensões territoriais que distanciam as regiões centro-oeste e norte do Brasil são ínfimas perante a grande confluência cultural, também compartilhada com estados do nordeste. Pela perspectiva dos ecossistemas, os fatores de ligação se encontram, por exemplo, na Amazônia, Cerrado e Pantanal, curiosamente presentes em Mato Grosso e compartilhados com outros estados dessas regiões. A diversidade que alimenta a cultura brasileira não passa despercebida a quem se incumbe de narrar histórias, sejam anciões, cientistas, cineastas, jornalistas ou fotógrafos. Assim, o fotografo Eraldo Peres construiu um potente trabalho documental de diversas manifestações culturais pelo Brasil, que é um deleite aos olhos. Fotógrafo da AP Associated Press, Eraldo tem um trabalho que percorre desde a cobertura política que trafega pelos curvilíneos interiores das obras de Niemeyer, às vielas onde pulsam as culturas populares nos rincões do país. Seu trabalho alimenta a vontade de revelar a potência da fotografia brasileira, em especial a produzida na região Centro-Oeste, o que levou à realização do festival Mês da Fotografia, uma grande vitrine da produção fotográfica e audiovisual contemporânea.
Realizado bienalmente em agosto pela Lente Cultural, composta também pelos aguerridos fotógrafos Carol Peres, Sérgio Almeida, João Campello e Cristiano Costa, o Mês da Fotografia não se resume a uma celebração da atividade fotográfica marcada pelo dia internacional da fotografia, 19 de agosto. Em sua sétima edição, busca lançar olhares sobre novas formas de se contar histórias a partir da luz. Neste mês, o tema Água – reflexões sobre o amanha, levou quase uma centena de fotógrafos a exibirem seus trabalhos em diversos espaços na cidade de Brasília, seja em galerias do Sesc, estações de metrô, projetadas em grande escala no lado externo da cúpula do Museu Nacional, intervenções urbanas e até uma Walking Gallery, quando os artistas empunham suas obras nas mãos e ocupam as ruas em marcha, caminhando pela cidade.
Antes da primeira luz raiar no horizonte e iluminar as grandes árvores desfolhadas pelo inverno seco de Brasília, para abrir o mês de agosto e o festival, uma intervenção urbana em memória do pataxó Galdino, realizada pelo fotógrafo José Medeiros. Uma foto de um Ikpeng caminhando em frente a uma fogueira foi ampliada em lambe e instalada no ponto de ônibus onde Galdino foi assassinado, incendiado vivo pela perversidade de jovens fascistas. Pequenas fotos 3×4 do documento de identidade de Galdino também foram espalhados pelo ponto, levando a profundos questionamentos e reflexões que são abordados pela sua exposição Já Fui Floresta, que teve sua abertura na mesma noite, no Sesc 504 Sul.
A exposição de Medeiros contou com três instalações, uma de espelhos, segundo ele, “porque o espelho foi um dos primeiros objetos que os indígenas ganharam do homem branco e desde então projetam o nosso reflexo, não o deles”. Em outra, as fotografias de crianças ikpengs mergulhando no rio foram fixadas dentro de aquários, e na última, diversas fotos de um ritual compunham um grande painel. Já Fui Floresta é provocativa, um soco no estômago para quem está acostumado a contemplar fotografias que retratam etnias indígenas com ares de exotismo, foge da fotografia contemplativa e mergulha da fotografia documental contemporânea. As fotografias em baixa velocidade de crianças brincando na chuva atestam a coragem de José Medeiros na entrega a essa relação de troca, que é maior que o trabalho em si e resume o encanto estético de sua fotografia.
No Museu Nacional, a exposição coletiva do Centro Oeste reuniu trabalhos do Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso do Sul e doze fotógrafos do Mato Grosso, que depois do estado-sede, teve a maior participação. O evento, que se iniciou na noite do dia 03, se lançou com um encontro com os curadores, que explanaram os critérios utilizados na curadoria e na composição visual da exposição. A galeria então foi aberta e tomada pelo atento público, que circulou com interesse por todos os espaços, que foram cuidadosamente organizados pelo diálogo entre os trabalhos. Do lado de fora, as fotografias expostas eram projetadas em videomapping na cúpula do Museu Nacional, podendo ser vistas de muito longe. De perto, a luz emanada se tornava diversão ao público. Se fotografia é luz, não faltaram celulares registrando o jogo de sombras proporcionado pelos projetores. Nem o carrinho de pipoca escapou aos cliques. No evento, todos eram fotógrafos, no som, na cerveja artesanal e na alimentação, em um trabalho colaborativo.
No dia seguinte, o setor comercial sul recebeu uma intervenção de lambes com participação de coletivos fotográficos de Brasília, que se reuniram em uma alameda para promover a ocupação de espaços públicos com arte. De lá, seguiram para a exposição Desague, Encontro das Águas e Outras Estações, instaladas em estações do metrô, no meio do veloz vai e vem, e que resultaram na publicação de um livro com participação de diversos fotógrafos e coletivos.
Esse grande encontro levou a uma aproximação de fotógrafos e organizadores de festivais de fotografia do Centro-Oeste e Norte do país, em uma articulação para a criação de um circuito de fotografia que visa construir redes de cooperação para viabilizar projetos em parceria e ampliar o alcance das ações, gerando uma ampliação da produção, circulação e distribuição dos trabalhos, resultando em maior força política para garantir a continuidade de políticas públicas destinadas à fotografia. O primeiro passo para a constituição de uma grande rede de fotógrafos, que passam às margens dos grandes centros, mas que possuem uma potente diversidade cultural tão necessária ao país.
Antes de um evento, de um mês, ou um festival, trata-se de um grande encontro de pensadores e criadores da fotografia como instrumento social de transformação do mundo. A câmera é a mediadora, e o protagonismo é do olhar que cada um carrega dentro de si e que constituem a diversidade da fotografia contemporânea brasileira, vista em Eraldo Peres, José Medeiros, Raimundo Paccó, André Dusek, Pedro Martinelli, Orlando Brito, Dida Sampaio, Sérgio Lima, Haristelio Sergio, Pedro Ladeira, Beto Barata, para citar alguns que pude conhecer em Brasília e que compartilharam seu vasto conhecimento com os mato-grossenses Amauri Santos e Jefferson Prado, que participaram da coletiva. De Mato Grosso, ainda tiveram trabalhos expostos os fotógrafos Antonio Siqueira, Adia Borges, Gabriele Garcia, Jonas Barros, José Cunto Neto, Margi Moss, Mayke Toscano e Rodolfo Luiz.
O festival segue sua programação até o fim do mês, e pode ser acessada no site do evento https://www.festivalmesdafotografia.com.br/blog/category/Festival-2018