Comunidades ribeirinhas e indígenas se unem contra Usina Hidrelétrica na Amazônia
Fotos e texto: Ahmad Jarrah
O ano era 1980. Dona Amilta partiu com seu filho doente nos braços, da comunidade de Pedreira, às margens do rio Arinos, com destino ao hospital da cidade. Amilta explica que naquela época tudo era mato e que não encontrava um carro pelos pouco mais de vinte quilômetros de estrada. Sem achar uma carona, saiu cedinho antes do sol raiar, carregando o menino no braço. Menino morre, não morre, morre, não morre. Sozinha com o filho, foi chegar em Juara, município mato-grossense mais próximo à comunidade, às quatro horas da tarde para ele ser atendido. Isso se repetiu outras três vezes. “Graças a Deus consegui criar todos os meus filhos e todos os netos, todos vivos. Mas nós íamos pra Juara a pé, e quando voltava trazia as coisas tudo na cacunda”, relembra.
Há 42 anos atrás, sua família foi uma das primeiras a chegarem na comunidade de Pedreira, uma região que despertava pouco interesse na época, diante da dificuldade de acesso à densa floresta amazônica. “Tudo que é boca quente nós enfrentamos aqui, abrimos no braço essa região. Éramos jovens, nós só não passamos fome, nós não tinha uma roupa boa, não tinha um calçado bom, leite aqui não achava uma gota. Hoje você pode tomar banho no leite. Nós padecemos pra fazer isso aqui!”. Ao mesmo tempo em que relata a dificuldade do passado, faz questão de demostrar como as famílias tornaram a região uma das mais férteis em produção leiteira no estado.
Amilta tem 64 anos e está sentada na varanda de sua casa, em frente ao barracão da associação comunitária de Pedreira onde acontecia um evento. Ao seu lado, estava sua cunhada Ana Maria, de 54 anos, que fez questão de também narrar sua história. Relembra saudosa de quando conheceu seu esposo Leli, 65 anos, dedicado violeiro e sanfoneiro irmão de Amilta. “Viemos de Alta Floresta pra morar aqui. Meu pai fez uma festinha de São João e ele (Leli) foi lá. Aí foi amor à primeira vista. Ele foi pedir eu em namoro pro meu pai, mas aí meu pai não quis. Aí nós fugimos. Meu pai caçou eu que nem um louco, meu pai era bravo. Aí até hoje nós tamo junto, tivemos 6 filhos e são 9 netos”, registrando um sorriso emocionado no rosto.
Também emocionada, Amilta prossegue a contar a trajetória de sua família na região. “Nós não ganhou nada, tudo foi dos braços, meu marido que nem um louco, eu ficava sozinha com os meninos no barraco de plástico, e meu marido fazendo diária pra ajudar a abrir. Eu cuidava da roça e ele ia pro mundão ficar 15 dias trabalhando. Ele voltava e só dava tempo de lavar as roupas pra ele sair pra trabalhar de novo, e eu cuidava do feijão, quebrava milho, tirava água de poço pra lavar roupa, socava arroz com as mãos. Sofremos muito aqui, e agora que é a hora que nós vai desfrutar, tem a bendita usina? Quantas vezes meus filhos choravam porque não tinha leite, aqui não tinha uma gota! E hoje nós somos ricos de leite, graças a Deus”.
Eu acho ruim que você mora no lugar tem tantos anos e não tem nada de interessante né, a gente sofre e depois que a gente forma eles vem? Então hoje cada um tem sua casa toda arrumadinha, suas coisas, agora vem a bendita usina? E pra onde que nós vai, agora que já tamo tudo velho?” indaga Amilta.
Desde 2013 sua família não dorme em paz, quando as primeiras notícias da vinda de uma Usina Hidrelétrica começaram a se espalhar pela região. O drama delas é compartilhado com dezenas de outras famílias, das comunidades de Pedreira, Palmital, Casulo, Rodolfo Ferro, e das terras indígenas dos povos Kayabi e Rikbaktsa. Toda essa população vive na microbacia do Rio Arinos, que está na sub-bacia do Juruena e na bacia do Tapajós, uma das regiões mais importantes para a manutenção da floresta amazônica. Enxugando as lágrimas, Amilta ressalta a relação das famílias das comunidades com as águas.
e só tem mais uma coisa, nosso rio é a nossa riqueza. É a nossa riqueza e o nosso sustento vem dessa água. Se morrer o rio, tá tudo morto, tanto as plantas quanto o povo, morre tudo, aí acabou! Morre as criação, morre os peixes, morre as plantas, morre os animais, morre a gente, morre tudo, até nossa morada vai morrer. To falando. Até nossa morada!”
Dona Amilta
Depois de dois longos anos pandêmicos, finalmente foi tempo dessas comunidades se reunirem presencialmente para debaterem os impactos da Usina Hidrelétrica Castanheira em suas vidas. O sorriso do sanfoneiro Leli só foi sair quando a música começou a tocar, naquela penúltima semana de abril de 2022, quando as comunidades se encontraram. Antes disso, as rugas de seu rosto denunciavam o ar sério e preocupado que domina a comunidade. Até o violão que ficava guardado em seu quarto ele foi resgatar, e a quem estivesse sentado por perto, Leli começava a dedilhar melodias cobertas de esperança.
Voltemos ao dia anterior. Enquanto Pedreira se preparava para o encontro, militantes do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens, que tem prestado todo apoio às populações da região, circulavam distribuindo camisetas e bonés de uma campanha em prol das comunidades, e convidando os moradores a participarem. Em uma dessas visitas, estava Sebastião Loureiro Sobrinho, 66 anos, em sua propriedade que também será inundada caso o projeto da Usina Hidrelétrica Castanheira siga adiante. Ele contava que estava um dia antes na cidade de Juara. “Eu tava conversando ontem com o cara da Casa do Criador, ele me falou – Ah Tião, vai ter festa lá? Aí eu respondi “É festa e não é! Não é festa de comunidade, aquilo lá é uma apresentação que vai ser feita pra ser contra a Usina. Porque você tá lá na rua, aí tem muita gente que põe na cabeça assim, que a usina vindo vai melhorar Juara, e é o contrário”. Sua fala demonstra um conflito de interesses entre alguns setores da cidade de Juara com as comunidades atingidas.
Seu Tião, como é mais conhecido, se instalou na comunidade de Pedreira em 1979 produzindo arroz, feijão e milho, depois plantou café. Em 1982 pegou um financiamento do governo e plantou 8 hectares de seringueiras, mas só foi desfrutar delas em 1989, quando elas estavam prontas para serem curadas. Posteriormente ampliou ainda mais o plantio de seringueira, mas em decorrência da desvalorização da borracha atualmente sua principal fonte de renda é o gado. Ele cria 60 rezes e vende bezerros na desmama. Mesmo em baixa, ele continua produzindo látex a partir da cura das seringueiras, atividade que mantém com esmero, se orgulhando das frondosas fileiras de árvores em seu quintal.
O alagamento decorrente da UHE Castanheira irá dividir sua propriedade em duas partes isoladas, que estarão inacessíveis, sem possibilidade de transitar o gado para o pasto e inundando toda a sua plantação de seringueira de uma das margens. Ele explica que as plantas gostam de água, mas não gostam de morar dentro da água. Nenhuma árvore sobreviverá. Além do alagamento, ainda existirão mais cem metros de APP – Área de Preservação Permanente, que não poderão ser utilizadas por ele. “Fazer o que, ir pra onde? Como? Porque ninguém passou aqui pra falar pra mim como vai ser. Não falaram nada sobre como serão as indenizações, sobre que área vão pagar, qual o valor, nada. E estamos sem respostas até hoje. Ficamos sem saber o que tá acontecendo.
Vou pra onde? Como vou reconstruir minha vida com a minha idade? Sou toda a vida contra a construção dessa usina”
Seu Tião
Silvio Roberto, militante do MAB, esclarece que na Política Nacional dos Atingidos por Barragens há uma discussão de que só ao anunciar a construção de uma hidrelétrica, as famílias que estão nesse território já são atingidas. “Porque, por exemplo, chega na família a notícia de que vai ser construída uma hidrelétrica e ela vai perder essa terra. Essa família já vai olhar pra terra de uma maneira diferente, já vai diminuir o investimento nessa terra, até suspender futuros planos, vai pensar duas vezes antes se vai reformar uma casa, arrumar um pasto, se vai reformar uma cerca. O drama do atingido já começa desde o anúncio da construção de uma hidrelétrica. A família nunca mais vai colocar a cabeça no travesseiro e vai dormir tranquila” explica.
No dia anterior ao evento, Silvio Roberto e Alisson Oliveira, ficaram com a missão de convidar as famílias da linha Rodolfo Ferro, na outra margem do rio Arinos, para o encontro em defesa das comunidades. Durante essas visitas encontraram Elio Luiz Klein, de 77 anos, e sua esposa Amélia Klein, 71, sentados na varanda de sua casa. O casal é pai da única professora da comunidade e trabalha com a produção leiteira, uma das principais atividades econômicas da região. Estão há 30 anos ali naquela terra e criaram os três filhos com a renda do leite, que hoje alcança os impressionantes 300 litros por dia. A família se orgulha em dizer que o leite produzido nas linhas Rodolfo Ferro, Pedreira e Palmital é o melhor de toda a região. Seu Élio caminha até o local onde as águas do lago formado pela barragem chegarão, e contando com a APP não sobrará nada para produzir em suas terras. O casal veste a camisa e o boné da campanha organizada pela própria comunidade e se compromete a participar do evento no dia seguinte.
Logo mais à frente em outro sítio está Robson, genro de Élio e Amélia, alimentando grandes leitões que tentam descansar naquele dia de abrasivo calor. Ele demonstra preocupação com a hidrelétrica e o medo de ficar desempregado. “Se essa hidrelétrica sair, não só eu to desempregado, como minha família vai perder o sítio e a renda do leite, meu vizinho e várias outras famílias também, meu patrão vai perder as terras dele, pra nós não tem nenhum benefício”. Além dos impactos nas famílias, ele faz questão de relatar os impactos ambientais, como à fauna com grande presença de capivaras, catetos, antas, cervos, pacas, onças-pintadas, lobete, cobras, várias espécies e toda a diversidade de pássaros que perderão ninhos e alimentos.
Debaixo de chapéus de palha para se protegerem do sol que ardia a pino, Robson e seu companheiro de labor, seu João, afirmam que há uma alternativa bastante viável e muito menos degradadora. “Se eles querem fazer uma usina pra gerar energia, monta uma usina solar, termosolar. A gente tem tanto sol nessa região nossa aqui, compra dois alqueires de terra, ou conversa com o povo aqui e a gente cede dois alqueires e constrói uma usina solar. Vai gerar a mesma quantidade de energia, vai ter menos impacto ambiental e não vamos perder a produtividade da terra. Eles vão ter o que eles querem que é a produção de energia, nós continuamos com nossas terras, nossos empregos, e todo mundo fica beneficiado, não é melhor?”, questiona.
Para ele, perder essa terra é recomeçar a vida, porque terão que deixar para trás tudo que construíram nestes anos. “Eles falam que indenizam a terra, mas com a indenização você vai comprar terra aonde hoje, com o preço que a terra tá? É recomeçar a vida do zero de novo. Na idade que a gente tá, meu sogro e minha sogra com 70 e poucos anos, eu, minha esposa, meus cunhados, tudo com 40 e poucos anos, como que a gente vai começar a vida de novo do zero?” finaliza com um questionamento em comum a todas as comunidades atingidas.
PEDREIRA E PALMITAL PRODUTIVAS
Os preparativos para a realização do evento no centro comunitário de Pedreira, agendado para ocorrer no domingo, 24 de abril, começaram desde o dia anterior com a mobilização das famílias para organizarem a divisão de tarefas. Não eram nem 4h30 da manhã do sábado, as estrelas ainda brilhavam no céu quando Lauro Taborda e Dona Fátima, proprietários de um produtivo sítio às margens do rio Arinos, começaram a se arrumar para os afazeres do dia.
Ela tinha que ir à cidade comprar os ingredientes para preparar o almoço, e ele ficou responsável por limpar um leitão que seria servido. Para pelar o porco caipira, esquentou a água em um tacho, com a ajuda do genro e de voluntários do MAB, iniciaram a limpeza e separação da carne, tão logo o sol começou a raiar. Explicava com maestria aos aprendizes as técnicas que aprendeu para se alimentar quando se embrenhou por semanas a fio trabalhando no seio da floresta, “é assim que fomos criados na lida” dizia com a sabedoria de quem se instruiu pela experiência vivida.
Depois, Taborda seguiu a um sítio próximo para fazer o mesmo procedimento com uma novilha. Todo o alimento foi doado pela própria comunidade, que também se voluntariou para o preparo. Esse clima colaborativo se estendeu até a manhã seguinte, horas antes do encontro. Uma luz dourada atravessava a janela e contrastava ao tocar as paredes azuis da cozinha comunitária. A lenha ardia no fogão do lado de dentro, onde as mulheres preparavam os acompanhamentos em grandes panelas de alumínio, e na churrasqueira do lado de fora onde os homens tiravam a carne de dentro de uma caixa d’água na qual ela salgava para levarem aos espetos. Para que não faltasse água, improvisaram uma mangueira que distribuiu do poço, por meio de uma bomba, até chegar às torneiras.
Toda uma decoração foi cuidadosamente organizada, com fotografias históricas, alimentos produzidos nas comunidades e um mapa fixado na parede com as demarcações do alagamento, tudo para sensibilizar os presentes e apresentar pedagogicamente os impactos da barragem na vida daquelas famílias.
A realização do encontro foi fruto de uma campanha das próprias famílias para demonstrar a produtividade da região e sensibilizar a cidade de Juara dos impactos que serão sofridos pelo município com a instalação da UHE Castanheira. Entre os mais de 200 participantes estavam moradores das comunidades de Pedreira, Palmital, Rodolfo Ferro e Casulo, famílias indígenas da etnia Kayabi, que vieram da aldeia Tatuí, vereadores, organizações da sociedade civil, movimentos comunitários e ambientais e o prefeito de Juara.
Entre os participantes estava Daniel Schlindwein, 61 anos, morador da Gleba Mercedes, em Sinop, que faz parte das 214 famílias desta comunidade que ficaram desalojadas pela construção de outra usina hidrelétrica no município vizinho, a UHE Sinop, cujo projeto iniciado em 2013 teve sua construção finalizada em 2017. Cinco anos depois, até hoje Daniel ainda não conseguiu reconstituir a vida que tinha na terra que lhe foi tomada.
Ele conta que os responsáveis pela usina manipularam as famílias distorcendo informações e dividindo as comunidades, e assim conseguiram levar o projeto adiante até sua finalização. Em poucas palavras, ele resume o que levou o projeto de barragem a avançar naquela época.
A hidrelétrica de Sinop pegou a gente pelas costas, não tínhamos informação e não tínhamos o MAB. Hoje a gente tem informação com antecedência porque temos o MAB com a gente. Se nós tivéssemos o MAB naquela época, essa usina nunca teria saído”
Daniel Schlindwein
POVOS INDÍGENAS UNEM FORÇAS CONTRA BARRAGEM
Entre as famílias que sofrerão os impactos da construção da UHE Castanheira estão os povos indígenas das etnias Kayabi e Rikbaktsa, que vivem às margens do rio dos Peixes e do rio do Sangue, afluentes menores pertencentes à mesma microbacia do Arinos.
O jovem cacique da etnia Kayabi, Dionísio, 39 anos, explica que seu povo foi participar do evento na comunidade de Pedreira por entenderem que os impactos da usina hidrelétrica de Castanheira, no rio Arinos, irá afetar principalmente a alimentação da sua comunidade. Segundo ele, “nós do povo Kayabi vamos ser muito afetados principalmente na parte dos peixes. Com uma construção grande dessas, os peixes não vão subir mais para o rio dos Peixes, saindo aqui do rio Arinos pra cima. Então isso vai atingir muito a nossa alimentação. O rio dos Peixes tem esse nome pela nossa fartura de peixes, os peixes que vão para o rio dos Peixes saem daqui desse rio grande que é o Arinos. A construção dessa barragem é muito perigosa pra nossa alimentação, o rio dos Peixes será um rio sem peixes” afirma.
Já o povo Rikbaktsa, afirma Dionísio, sofrerá um impacto que afeta diretamente a cultura da etnia. Uma das principais matérias-primas para o artesanato Rikbaktsa é uma concha de marisco coletada na areia das margens do rio Arinos. Com ela fazem chocalhos para usarem nos rituais, nas apresentações e atividades culturais do povo, até nos casamentos. Com a construção dessa barragem, essas conchas vão sumir. Outra perda será dos bambuzais que margeiam o rio, ao serem inundados o povo Rikbaktsa perderá o principal material utilizado para a produção de arcos utilizados para caça, de onde provém a base da proteína necessária à alimentação da aldeia.
Zé Ricardo, 56 anos, ex-cacique do povo Kayabi explica que essa situação vivida no rio Arinos já havia sido vivenciada pelo seu povo anteriormente. “Isso que tão querendo fazer no rio Arinos já tentaram fazer outra vez, quando quiseram construir uma usina lá na cachoeira lá em cima. Eles estavam entrando sem aviso, sem autorização e sem comunicar ninguém, pra construir uma usina. E se não fosse eu, nossa comunidade e nossos parceiros de luta, isso tinha saído. Hoje eu existo pra contar essa história pro povo, quando nós impedimos a construção de outra usina na cachoeira”, relembra ao falar sobre a tentativa de construção de uma usina alguns anos antes, na cachoeira Salto Itú, no rio dos Peixes, dentro da terra indígena Kayabi.
“Tem muitas pessoas contra, mas na cidade tem muito a favor, mas nem por isso podemos desanimar e deixar de defender a nossa pátria que é o meio ambiente” afirma Zé Ricardo sobre a UHE Castanheira. O cacique Dionísio, por sua vez, confirma aquilo que todas as famílias da comunidade de Pedreira e Palmital relataram, a falta de informações e de diálogo por parte dos gestores do projeto de hidrelétrica. “Hoje em dia o Governo manda as documentações todas prontas de lá pra cá, e quando a gente vai ver já tá tudo feito. Nunca tivemos uma reunião sobre o projeto da usina com o governo. A empresa não foi na comunidade, não falou com ninguém. Quando a gente vai ver, o projeto tá tudo aprovado e não consegue depois discutir. Só ficamos sabendo da usina através do movimento mesmo, com o MAB e com os nossos apoiadores” declara Dionísio.
Ao final do evento o cacique deixou uma mensagem à população da cidade de Juara. “Eu acho que a cidade tem que ter mais um pouco de amor com as pessoas que moram no campo, por que é da roça que vai o alimento pro município, pros mercados, vai o imposto que ajuda as escolas, os hospitais. Então a cidade tem que ter mais amor por quem mora no campo, pelas comunidades que vivem às margens do Arinos, do rio dos Peixes, do rio do Sangue. Eles tem que pensar nisso. A população de Juara tem que entender a importância das comunidades e do rio” reforçou Dionísio, que também não poupou o governo pela responsabilidade com as florestas.
Governo, respeite o povo, respeite os povos indígenas, as comunidades ribeirinhas. O mundo já está acabando, a queimada, o desmatamento, então com mais esse empreendimento nosso Brasil cada vez mais vai se acabando. Essa é a minha mensagem e a mensagem do povo Kayabi, que respeitem a natureza! E hoje os povos indígenas são fundamentais para preservação da floresta, nós cuidamos dela porque vivemos dela”
Cacique Dionísio
ARTIMANHAS POLÍTICAS E JURÍDICAS DAS USINAS HIDRELÉTRICAS
Diante de um cenário cada vez mais insaciável das políticas energéticas em busca de fontes hídricas para sua produção, os grandes rios brasileiros se tornam um alvo imprescindível, especialmente aqueles com quedas d’água ou fortes corredeiras que possam gerar a força gravitacional necessária para a operação de usinas hidrelétricas e pequenas centrais hidrelétricas. Mesmo com o farto potencial de energias mais sustentáveis no Brasil, como a eólica e a solar, grupos políticos e econômicos históricos utilizam sua influência para manter uma centralidade sobre o poder energético obtido através dos recursos hídricos, onde eles operam há décadas de maneira lucrativa. Além da energia em si, ainda há uma porção de outros recursos provenientes dos barramentos, como a construção civil, alguns setores de serviços, e principalmente a especulação imobiliária.
Para Jefferson Nascimento, militante do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens, principal organização brasileira que atua nesta pauta, “o exemplo que nós temos nesses 31 anos de movimento nacional é conhecer que a história é a mesma em todos os locais e regiões do Brasil. Do norte ao sul do país se constroem barragens destruindo o meio ambiente e deixando a conta para as populações locais pagarem”. Ele explica que em praticamente todos os casos os projetos de barragens são levados adiante sem consulta pública à população atingida, muitas vezes de maneira sorrateira e manipuladora, apenas para cumprir uma mera formalidade dos ritos, porém as decisões são tomadas em outras instâncias, bem distantes dos locais onde elas serão construídas.
No caso da UHE Castanheira, prevista para ser construída no rio Arinos, o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental, chamado de EIA/RIMA , foi publicado em 2015, mas já havia sido elaborado em anos anteriores. Além de avaliar a intensidade e a dimensão do impacto no meio ambiente, com o EIA/RIMA são levantados dados quanto à área que necessitará ser desapropriada e indenizada, e qual o valor necessário para a construção de uma hidrelétrica. Logo que o documento foi publicado, a empresa responsável pelo relatório quis realizar uma audiência pública, que é considerada o rito final para a emissão das licenças necessárias e início da construção. Porém, naquele ano, o Ministério Público Estadual (MPE) juntamente com a comunidade e estudantes de Juara conseguiram barrar sua realização. Em todo esse período, até hoje, nenhuma das comunidades atingidas foram ouvidas.
Jefferson confirma que “não houve escuta, eles simplesmente fizeram um estudo aqui que não condiz com a realidade, não só aqui na região do rio Arinos, mas nem nas regiões que pegam os impactos indiretos, como o rio do Sangue e o rio dos Peixes. Há uma insistência constante deles realizarem o rito final, que são as audiências públicas, que são uma mera formalidade para eles conseguirem emitir a licença prévia e logo depois levar à leilão e iniciar a construção. Então essa articulação que temos feito enquanto MAB, junto às comunidades e aos povos indígenas, é muito no sentido de barrar essa audiência pública, pois sem audiência pública não tem hidrelétrica”, explica.
O MAB frisa que a audiência pública não tem poder decisório, é meramente consultiva e independente do seu resultado, as licenças prévias já poderão ser emitidas, mesmo que a comunidade, em sua maioria, se posicione contra a construção da usina. “É o que chamamos de falsa democracia, falsa participação popular, porque no final não sai a decisão, a decisão é tomada em outro lugar, em outra instância, é tomada no Ministério de Minas e Energia, dentro da SEMA (Secretaria de Estado de Meio Ambiente),” defende Jefferson.
Então, os povos não têm o direito básico que é o direito a dizer ‘não’. Esse direito é violado desde o início. Essas comunidades tinham que ter o direito de dizer ‘não!’ respeitado”
Jefferson Nascimento
Outro problema diagnosticado se refere ao processo de construção. Silvio Roberto explica que no Plano Básico Ambiental, realizado após a aprovação das licenças e liberação da obra, as empresas se comprometem a retirar 100% da vegetação alcançada pelo lago. Entretanto, no decorrer do empreendimento essas empresas costumam manipular informações, inclusive contando com apoio de cientistas para alterar o modelo matemático de cálculo, para que essa porcentagem de vegetação a ser suprimida diminua.
Foi o que ocorreu com a Usina de Sinop, que teve uma supressão mínima. Praticamente toda a vegetação foi inundada pelo lago, poluindo o rio com milhares de árvores apodrecendo dentro da água e levando a sucessivas mortandades de peixes, de variadas espécies, chegando a centenas de toneladas, gerando desequilíbrio na bacia hidrográfica e comprometendo toda a ictiofauna. Isso só foi possível porque a SEMA acabou aprovando uma modelagem matemática questionável, elaborada por um cientista contratado pela empresa, e liberou o empreendimento, sob a hipótese de multa à empresa caso a ausência de supressão gerasse danos. Para a empresa, esse tipo de acordo se torna lucrativo, pois o valor da multa é muito inferior ao valor que seria investido para a supressão de toda a vegetação inundada.
“Compensa pagar a multa ao invés de retirar a vegetação. Além disso, na maioria das vezes essas empresas não pagam a multa, elas começam a recorrer, e recorrer, até não precisarem mais pagar, pois possuem forte assessoria jurídica e poder econômico. E para a UHE Castanheira está previsto esse mesmo modelo matemático controverso de Sinop, que reduz ao mínimo a supressão da vegetação que será inundada” reforçou Silvio.
Em Sinop, o MPE apontou que para fazer a supressão da vegetação necessária, a empresa que venceu o leilão, Sinop Energia, teria que arcar com cerca de 200 milhões de reais em investimentos. Por outro lado, somadas todas as multas emitidas em decorrência da mortalidade de peixes e dos impactos ambientais da UHE Sinop, chegou-se ao valor total de 90 milhões de reais.
“Depois de vários recursos na justiça, foi feito um acordo com a empresa e a multa foi reduzida para quatro milhões de reais. Ainda assim, a Sinop Energia levou o caso para a Justiça Federal, que fez um novo acordo para que a própria Sinop Energia gastasse como quisesse os quatro milhões em multa, apresentando um plano de ação. Por fim, a Sinop Energia reverteu esse dinheiro em benefício próprio. Isto é, no final acabaram não gastando nada”, reiterou Silvio.
A UHE Sinop se tornou o grande exemplo das consequências da barragem para as comunidades de Pedreira e Palmital. “Você conversa com as pessoas que passaram diretamente por esse processo em Sinop e pergunta qual foi o resultado depois. A vida desse povo piorou muito. E aqui tem esse rio Arinos, esse rio lindo cheio de corredeiras, que é lugar de pesca, lugar de turismo, tem espécies de peixes que só existem nessa bacia, como a Matrinxã. Tudo isso vai virar um lago com mata podre dentro. Ou seja, juntar esses grupos agora é fundamental para a resistência. Porque a estratégia deles é dividir, isolar esses povos para conseguirem adesão de cada grupo e assim irem avançando com o projeto. E a nossa é inversa, a nossa é juntar, é unir. Nós não temos poder econômico, nós temos a força dos povos junto, resume Jefferson.
Esta reportagem foi produzida em parceria com o coletivo Proteja.