Fé, cultura e resistência negra marcam os 271 anos de Vila Bela da Santíssima Trindade

Texto e fotos: Ahmad Jarrah

Vila Bela da Santíssima Trindade é uma das jóias do Brasil. Fundada em 1752, se tornou a primeira capital de Mato Grosso, à época da Capitania, retomando o posto simbolicamente todo 19 de março, desde 2016 por medida de lei, na data que marca o aniversário da cidade. Prestes a completar 271 anos de história, Vila Bela carrega uma herança impressionante, ligada especialmente à cultura africana. 

A cidade e seu povo são símbolos da resistência afro-brasileira e carregam o legado do antigo Quilombo do Quariterê, onde negros liderados por Teresa de Benguela se aliaram aos indígenas para lutar contra a escravidão. 

Com cerca de 70% dos habitantes negros, a cidade é um exemplo de como as tradições podem se manter através das gerações. De acordo com a pesquisadora Silviane Ramos, em entrevista ao Globo, a população da cidade só não é 100% negra em função da presença indígena e da colonização recente vinda de estados da Região Sul.

Para se ter ideia, Mato Grosso possui atualmente cerca de 160 áreas ou comunidades ocupadas por quilombolas. Do total, 60 são reconhecidas. Para a pesquisadora, que é descendente da rainha africana Teresa de Benguela, não há dúvidas: “Vila Bela é uma pequena África em Mato Grosso”.

A região é reconhecida como um centro de manifestações culturais únicas, sendo a Dança do Congo e a Dança do Chorado as mais icônicas. A fé está presente nas celebrações, que chegam a durar quase uma semana de festança, que incluem a festa do Divino, São Benedito, Mãe de Deus e Santíssima Trindade. 

CULTURA

A Festança de Vila Bela é uma representação da resistência e luta do povo negro, especialmente a Dança do Chorado, em que mulheres equilibram garrafas sobre suas cabeças. Essa dança é originária do período colonial, quando as mães, irmãs e esposas dos escravos fugidos ou desobedientes dançavam para pedir a liberdade e o perdão, ainda que nem sempre obtivessem sucesso. A lamúria nos cantos dá o nome à dança.

Outra expressão cultural marcante na história da cidade é a Dança do Congo, uma tradição ainda mais antiga, que tem origem na época das minas de ouro da região, onde negros escravizados mesclavam elementos da cultura africana com a religiosidade católica.

Os grupos que praticam a Dança do Congo se vestem com trajes coloridos e enfeitados com penas enquanto executam a dança. A coreografia da dança encena uma batalha simbólica entre dois reinados africanos, com personagens representando soldados, embaixadores e nobres dos reinos opostos. As roupas utilizadas pelos participantes são adornadas com mantos, coroas e bastões ornamentados com flores, e os soldados portam armas como espadas e capacetes com penas de ema.

Durante a dança, os dançarinos protegem festeiros especiais que carregam objetos sagrados e homenageiam São Benedito com flores. A música é feita através de tambores, cavaquinho e outros instrumentos musicais, e a dança em si é caracterizada por movimentos que lembram a marcha militar.

A bebida usada durante os festejos é o “Canjinjin”, feita a base de cachaça, gengibre, canela, cravo e mel. Guardada em pequenos cantis envoltos por couro, é consumida durante a dança para estimular os dançarinos em toda a exaustiva jornada marchando pelas ruas da cidade.

Os festeiros de cada ano se mobilizam para organizar os preparativos, incluindo a comida que alimentará a comunidade e visitantes durante os dias de festança. A riqueza da culinária de Vila Bela está em todos os detalhes, revelados com o dissipar da fumaça que emerge do grande fogão à lenha, para dar conta de tanta gente. Durante a festança, todos compartilham as refeições gratuitas preparadas na cozinha comunitária.

Contrastando com quase três séculos de preservação das tradições e expressões culturais, Vila Bela ainda enfrenta muitos desafios, como a falta de infraestrutura das ruas pela cidade, que ainda possui boa parte sem asfalto e sem rede de saneamento, o que não diminui seu potencial turístico, porém afetam diretamente a vida de sua população.

A década de 1980 inaugurou um inédito interesse externo por Vila Bela. A presença de jornalistas, pesquisadores, técnicos do patrimônio teve como efeito um processo que a conduziu da condição de “abandonada” para a de símbolo de Mato Grosso. Atualmente Vila Bela reúne centenas de pessoas nos períodos de festa.

Em 2021, devido ao fluxo de turistas na região, foi sancionada  a lei 1.506 que regularizou a condição de condutores de Turismo no município. Além das tradições culturais, as belezas naturais carimbam Vila Bela no roteiro turístico do estado, com destaque para as águas cristalinas do rio Guaporé e para as ruínas históricas da Igreja da Matriz da cidade, ladeada pelo Parque Estadual Serra de Ricardo Franco. 

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