Esta reportagem foi produzida em parceria com a Mídia Ninja
Texto e fotos: Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski
O amanhecer na transpantaneira carrega um ar denso, esfumaçado e sombrio. Uma sensação asfixiante surge da combinação entre a fumaça dos incêndios no Pantanal, o calor escaldante e a umidade em níveis desérticos. Pela estrada, alguns turistas seguem carregando seus barcos de pesca em direção ao Porto Jofre, ao final da rodovia. Os tradicionais corixos pelo caminho se tornaram pequenas ilhas de refúgio para os animais em fuga das chamas e um dos poucos cenários típicos do Pantanal que ainda cabem nas fotografias de viagem.
A equipe da A Lente esteve no sábado (5) no pantanal mato-grossense e percorreu mais de 500 quilômetros de estrada e de barco para acompanhar a destruição provocada pelos incêndios, o impacto nas famílias pantaneiras e o combate às chamas. O grande questionamento que dá início à essa jornada, de ares apocalípticos, é a origem dos incêndios e como eles estão afetando de forma devastadora a vida na maior planície alagada do mundo.
Têm sido comum acordar na capital mato-grossense, Cuiabá, com o céu tomado pela fumaça das queimadas que atingem todos os biomas do Estado, em especial o Pantanal, que arde em chamas há mais de um mês na maior estiagem dos últimos 40 anos. A fumaça vista do alto dos prédios da capital, com mais 200 quilômetros de distância dos focos principais, é um alerta: trata-se de um número recorde de incêndios que já levou o Pantanal a perder para o fogo mais de 100 mil hectares de vegetação, além de animais e parte do fluxo turístico da região típico desta época do ano.
Os incêndios florestais seguem uma temporada incomumente intensa e descontrolada em 2020, tornando o bioma o campeão em incêndios, ultrapassando a Amazônia e o Cerrado. Para muitos moradores da região, como os pantaneiros tradicionais, o cenário é desolador, jamais visto antes.
Segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia, o volume de chuvas ficou 50% abaixo do previsto durante os primeiros meses do ano, fazendo com que os níveis registrados do curso de água estejam muito inferiores aos níveis normais para este período, o que provocou uma baixa histórica. Além disso, atrelado à estiagem, a soma da ação do homem por meio de práticas inadequadas e o uso do fogo como ferramenta de manejo sem técnicas e controle, levou o Pantanal a bater recorde histórico de queimadas.
É importante reforçar que, em uma soma para além de Mato Grosso, as queimadas já consumiram mais de 1,5 milhão de hectares de todo o Pantanal brasileiro, segundo pesquisa realizada pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que inclui os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que recentemente uniram esforços inéditos para atuarem juntos no combate às chamas.
De acordo com os laudos das perícias técnicas realizadas pelo Centro Integrado Multiagências de Coordenação Operacional (Ciman-MT), publicado na última sexta-feira (04) pelo Governo de Mato Grosso, constatou-se que os incêndios registrados na região do Pantanal mato-grossense foram provocados por ação humana. Os laudos foram encaminhados para a Delegacia de Meio Ambiente (Dema) para abertura de inquérito e responsabilização dos infratores.
É certo que o fogo não brota espontaneamente. Também é verdade que durante o período de estiagem a região sempre registrou os incêndios florestais, inclusive em 2019, ano em que também atingiram grandes proporções, mas nada próximo ao relatado este ano.
O que é inédito agora é a existência da Pandemia por coronavírus, situação que impactou o turismo na região, diminuindo o fluxo de pessoas e ocasionando menor visibilidade pública. Essa condição tornou mais propícia a ação de fazendeiros no manejo do pasto pelo fogo, sendo uma provável causa do início dos incêndios. Não são poucas as fazendas de gado que beiram a rodovia transpantaneira, inclusive de potências econômicas como a fazenda do grupo Camargo, onde a equipe presenciou o fim de um grande incêndio.
A princípio, como apurado pela reportagem, o fogo em algumas situações se inicia nas fazendas, numa tentativa controlada para manejo de pasto. Os fortes ventos levantam a fuligem e folhas secas em brasa, que se espalham propagando o fogo. Em vários momentos presenciamos o fogo surgir como mágica nos campos, e onde nada queimava já se levantava a fumaça, ocasionada, segundo os próprios moradores da região, por essas quase invisíveis fuligens.
Ocorre que não é apenas do gado que vive o pantanal mato-grossense. Um dos fortes setores econômicos da região é o ecoturismo voltado para a pesca e observação da fauna e flora. São diversas pousadas que recebem anualmente turistas do mundo todo para apreciar as belezas naturais desse tão singular ecossistema. Também existe a atuação de ONGs na preservação do meio ambiente, principalmente na proteção da onça pintada, vista como uma ameaça aos fazendeiros de gado.
A proposta das ONGs é minimizar conflitos e mostrar aos fazendeiros que uma onça vale mais viva do que morta, assim apresentam a viabilidade econômica proporcionada pelo turismo e também soluções que evitam os assassinatos de onças e os prejuízos da perda de gado nas fazendas, como a instalação de cercas elétricas.
Uma das ONGs atuantes no Pantanal é a Panthera Brazil, que administra uma das áreas próximas ao Porto Jofre, já quase na fronteira com Mato Grosso do Sul. Encontramos Fernando Tortato atuando como voluntário junto com uma pequeno grupo de militares trabalhando no combate ao incêndio que invadiu uma propriedade.
Combate às chamas
O fogo é enfrentado por militares da Marinha do Brasil, brigadistas do Corpo de Bombeiros, ICMBio, Ibama, Secretaria do Meio Ambiente de Mato Grosso, equipes de governo do Mato Grosso do Sul e voluntários. Diversas organizações da sociedade civil também estão em ação para o controle das queimadas.
Fernando Tortato, biólogo na ONG Panthera Brasil, trabalha há mais de dois meses como voluntário no combate ao fogo das fazendas vizinhas. Ao lado do soldado do corpo de Bombeiros, Wellington, e do soldado da Marinha do Brasil, Valentin, ele tenta apagar as chamas descontroladas que haviam pulado o aceiro e começavam a atingir as terras da ONG. Fernando, que é pesquisador e mora há anos no Pantanal, afirma a necessidade de conter principalmente os focos próximos às pontes, quase todas de madeiras, um risco iminente que ocasionaria o bloqueio da estrada. Ao longo da Transpantaneira existem 118 pontes de madeira.
A equipe abastece grandes tambores com a água dos corixos, canais que ligam as águas de baías, lagoas, alagados tornando-se pequenos rios, e atuam no combate direto às chamas. Fernando conta que o fogo tem unido a população local e que todos se envolveram de alguma maneira na contenção dos incêndios, seja atuando diretamente ou oferecendo apoio.
Enquanto uma equipe abre grandes aceiros com tratores, para evitar a propagação das chamas, outra equipe atua nos rescaldos, impedindo que o fogo ressurja onde já estava controlado. Em determinado momento, um dos voluntários grita que o fogo havia pulado o aceiro e já se espalhava pelo campo. Já exaustos, todos viam o trabalho encolher diante da dimensão do incêndio. O fogo havia vencido mais uma vez, era hora de deixar o local.
Um técnico do ICMBio, que não quis se identificar, relatou o pânico provocado nas equipes pela morte do colega de trabalho Welington Fernando Peres Silva, que atuava no combate a um incêndio no Parque Nacional das Emas, em Goiás. Há menos de uma semana Wellington teve severas queimaduras que ocasionaram sua morte, depois de ficar com o corpo preso em um terreno alagadiço durante uma operação. Os colegas que atuavam junto nada puderam fazer.
Outro técnico, servidor de um órgão de fiscalização do Governo Federal, relatou que ocorreu pelo menos uma situação em que receberam ordens superiores para que suspendessem o combate a um princípio de incêndio em Mato Grosso do Sul. De acordo com o servidor, estavam em uma equipe com quatro pessoas e, por ser incipiente, era plenamente possível ter controlado as chamas naquele instante, porém a ordem superior foi fazer fotografias e recuar.
O servidor relata que achou a ordem estranha e citou “politicagem”, desorganização e falta de planejamento nas decisões. Relatos de moradores da região apontam que o fogo em Porto Jofre começou a partir desse foco de incêndio em Mato Grosso do Sul, que atravessou o rio São Lourenço até alcançar Mato Grosso.
Uma das estratégias investida pelo poder público no combate aos incêndios no Pantanal foi o uso de aeronaves e helicópteros, ação que, segundo os moradores, são insuficientes. Guardadas as proporções do fogo, é uma gota d’água em um oceano. A reportagem contou duas aeronaves de pequeno porte e um helicóptero da Marinha brasileira atuando em Porto Jofre.
Em tempos de pandemia de Covid-19, ações de mobilização para combater esses focos de queimadas, especialmente nas áreas protegidas, tornam-se um grande desafio. Por outro lado, o espírito da coletividade parece predominante, simultaneamente aos vários e incansáveis pedidos de chuva por onde quer que se passa.
A corrida pela vida
Ao fundo de todas as cenas, até onde os olhos alcançam, paira a fumaça no horizonte. Pelo trajeto, o cenário da estiagem deixa visível o sofrimento de muitas espécies. Atravessando precárias pontes de madeira, é o possível perceber a dinâmica dos animais que se assanham nos pequenos corixos que ainda restam nessa época.
À beira da rodovia é possível visualizar jacarés, cobras, jabutis e muitas espécies que não conseguiram se salvar.
Muitos animais ainda fogem em busca de alimento e água. Um búfalo corre de um lado ao outro, atordoado, procurando abrigo. Um bando com quase cem porcos-do-mato atravessa a rodovia numa incansável busca por vegetação livre do fogo. Assim segue a fauna, dia e noite, nas travessias e fugas, à medida que os incêndios se aproximam. Como esses animais, as onças, veados, outros mamíferos, répteis, aves, todos se esforçam em uma corrida pela vida.
De acordo com especialistas, os impactos para a fauna provocados pelos incêndios no Pantanal neste ano só poderão ser levantados após o fim das queimadas, mas já sabe-se que serão irreversíveis. Ainda segundo especialistas, não tem como prever quanto tempo que a biodiversidade atingida pelo fogo irá precisar para se regenerar, pois o impacto do fogo varia de acordo com as espécies.
As famílias pantaneiras
Não é preciso muito esforço para visualizar esse cenário desolador que se estende por todo o Pantanal. No início da Transpantaneira é possível tomar um último café antes de seguir viagem. Numa lanchonete simples e colorida, típica das casas da cidade, Dona Lídia, 52, começa o expediente antes mesmo da 5h da manhã. Ela deixa o café a servir por quem passa, e o uso de máscaras é um requisito básico.
O comércio de dona Lídia é o único nos 147 km de Transpantaneira, fazendo com que ela perceba bem o baixo movimento de turistas e pescadores neste ano. Segundo ela, além da Pandemia, as queimadas ganharam uma dimensão nunca vista antes na região, reduzindo fortemente o número de turistas, uma situação inédita nessa época do ano que tem como ponto forte o ecoturismo. Além da questão econômica, Ligia sente a dureza da destruição dos animais e da vegetação, “muito doído” reforça ela lembrando também sobre a fumaça que dificulta a respiração.
Lídia não é a única mulher que enfrenta o desafio de se adaptar à pandemia e às queimadas neste ano. Muito próximo de sua realidade está Margarete Alves de Assis, 51, poconeana nascida e criada. Ela vive em Porto Jofre. Ela é camareira há mais 15 anos nas pousadas e se prepara para mudar para uma outra região, em busca de mais oportunidades frente às tantas queimadas. Para Margarete, antes das queimadas era melhor para passear, para respirar, e até para conhecer o Pantanal.
“Neste ano, a queimada está muito maior, quem chega no Pantanal só vê morte dos animais e da vegetação. Prejudica os bichos, o meio ambiente e até as onças pintadas. Esse fogo é consequência de muitas pessoas que não tem consciência”, finaliza.
No rio São Lourenço, o piloteiro Tião fala desacreditado de como as queimadas, a baixa do rio e a pandemia têm afetado Porto Jofre nesses últimos meses. Na esperança de vir chuva, ele pilota um dos pequenos barcos atracados no Porto há meses e reclama inclusive da diminuição dos peixes no rio, lhe causando apreensão toda essa situação.
Com a baixa histórica dos rios que cortam a região, Nelson, 52 anos, comandante do barco-hotel Oásis do Pantanal há 15 anos, também clama por chuva para finalmente pilotar o seu barco, já atracado com viagens reduzidas há três meses. Ele, que atravessava constantemente os Rios Piquiri, São Lourenço e o Cuiabá, reforça que a seca severa e as queimadas neste ano atrapalham inclusive a navegação.
“Em 22 anos morando em Porto Jofre essa é a seca mais braba que já vivemos”, diz o casal de pescadores profissionais, Diana Maria de Arruda e Oscar de Moraes.