Texto: Bruna Obadowski
Fotografias: Ahmad Jarrah e Bruna Obadowski
Ninguém deve alimentar a ideia de suicídio […] . Já faz tanto tempo que estou no mundo que eu estou enjoado de viver. Também, com a fome que eu passo quem é pode viver contente? (Jesus,1960, p.121).
Essas são palavras de Carolina Maria de Jesus, como parte de seus relatos em uma das obras mais importantes da literatura brasileira, “O quarto do despejo: diários de uma favelada”, lançado em agosto de 1960. Sessenta anos depois, na terra do agronegócio, essa triste realidade ainda persiste. Sentada na cama, ao lado de seu pai, depois de um longo silêncio, Girlene Santana de Souza, 49 anos, confessa que, por diversas vezes, pensou em suicídio.
Após dois dias dividindo uma lata de sardinha e um restinho de arroz com o pai e a neta, Girlene amanheceu em busca de uma possibilidade de alimentar sua família. Seu destino, assim como de dezenas de famílias em Cuiabá, capital do agronegócio, foi juntar-se, pela primeira vez, à fila de distribuição de “ossinhos” feita por um açougue da cidade.
Girlene, que está desempregada e com o auxílio emergencial cancelado pelo governo federal, vive somente da aposentadoria mínima de seu pai, o qual cuida desde que adoeceu. Sem renda fixa e sem o auxílio de programas sociais municipal, estadual ou federal, se vê desamparada frente à sua situação de extrema vulnerabilidade e insegurança alimentar.
Sem desanimar diante dos desafios diários, ela segue o conselho da vizinha e busca o açougue como possibilidade de amparo. Sem dinheiro para o transporte, depende de carona para o ônibus. Sua neta de cinco anos não havia tomado café quando a encontramos ao meio dia, estavam à espera da entrega da doação do ossinho para seguir rumo ao almoço. Pela primeira vez na fila, ela já faz planos de retornar, pois visualizou na ação uma possibilidade de ter a proteína, ao menos, três vezes na semana. Chegando em casa, o ossinho vai direto para a panela, apenas com o sal. O gás é emprestado, quando não tem, o fogo é feito no quintal.
Faz é dias que eu não sei o que é comer carne.
Longe de precisar apenas da solidariedade para com a alimentação, Girlene também sofre com a falta de medicamentos. Ela e o pai dividem o remédio para pressão. Atualmente compartilham o que sobra da medicação do vizinho, “uma caixa custa 12 reais, para passar o mês seriam 24 reais, mas não temos”, conta.
Além da pressão, Girlene se trata há 19 anos com medicamentos antirretrovirais (ARV) para prevenir a evolução do HIV, descoberto por ela quando tinha 30 anos. “Descobri o HIV após a morte do meu marido. Se não fosse o SUS eu já estaria morta”, relata ela ao falar do atendimento recebido através do Sistema Único de Saúde (SUS), que garante desde 2013 tratamento gratuito para todas as pessoas vivendo com HIV (PVHIV), independentemente da carga viral.
“As pessoas pensam que a gente está mentindo, mas elas precisam saber que a fome é real”, lamenta logo ao chegar em casa, sobre a incredulidade de determinadas pessoas diante da situação de necessidade que vive. A realidade de Girlene não é distante de grande parte da população brasileira. Assim como sua família, outras 140 mil famílias vivem em estado de extrema pobreza em Mato Grosso, sendo 18 mil famílias na mesma situação em Cuiabá.
Segundo o levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em abril deste ano, o número de cidadãos vivendo abaixo da linha da pobreza triplicou, e chegou a atingir mais de 14 milhões de famílias brasileiras. Esse número registrado em abril de 2021 é o maior da série histórica registrado pelo Ministério da Cidadania, iniciada em agosto de 2012, e não leva em conta pessoas em situação de rua, apenas famílias domiciliadas.
FAMÍLIAS
A fome tá matando muita gente.
É assim que Josneide, ao lado de sua família, se apresenta na fila do açougue, que dobra a esquina. Aglomerados em poucas áreas de sombra, muitas famílias seguem com o mesmo objetivo: garantir a mistura do almoço.
Na mesma condição, Edileia Daiane, também busca uma alternativa para complementar a alimentação de sua família que vive com apenas R$ 200,00 mensais. Desempregada, mãe de cinco filhos, tem o ossinho como a única proteína disponível para oferecer às crianças, as quais compartilha a guarda.
Se não fosse esse ossinho, a gente estaria comendo só arroz e feijão. Até o ovo antigamente era barato e hoje está caro, 13 a dúzia e subindo.
Edilene é a representação das estatísticas apresentadas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde muitas famílias tentam sobreviver com R$ 246,00 por mês. A maioria dessas pessoas estão envolvidas em um ciclo de vulnerabilidade social que, sem severa intervenção externa, sobretudo dos governos, é improvável que seja quebrado.
Uma das coisas que chama a atenção é a assiduidade das famílias na fila. Edileia, que já frequenta a distribuição há dois anos, relata ter acompanhado de perto o aumento expressivo de famílias em busca do ossinho. “Quando a gente começou a pegar aqui, não tinha ninguém, era pouca gente, hoje é diferente… de onde saiu esse tanto de gente? A fome tá feio”, desabafa.
Segundo Samara Rodrigues de Oliveira, de 38 anos, dona do estabelecimento, muitos carecem de ajuda. “Muitos precisam de remédios, leite para as crianças, gás de cozinha, a lista não pára”, reforça. Naquele mesmo dia, Edileia não tinha gás em casa e iria preparar seu almoço na casa do pai, que mora em outro bairro. Explicou que ele também precisava almoçar e estava esperando pelo ossinho. “Um ajuda o outro. Ele tem o gás e eu peguei o ossinho agora”, relatando que o pai também passa por dificuldades.
A FILA
A doação do ossinho pelo açougue é uma ação recorrente há quase dez anos. Os chamados “ossinhos” são pequenos pedaços dos ossos com vestígios de carne resultantes do processo de desossa do boi. No açougue, Samara conta que não deixa efetivamente “limpo” , mas com a chamada ‘bananinha’, usada para fazer churrasco, assim a quantidade de proteína estará garantida para quem precisa da doação para se alimentar.
A procura aumentou há cerca de quatro anos e foi preciso reorganizar as doações três vezes na semana, toda segunda, quarta e sexta-feira, sempre às 11 horas. Entretanto, no último ano houve um aumento acentuado no número de pessoas que se juntaram à fila e foi necessário reorganizar a logística. “Hoje temos dois funcionários somente para atender as doações, eles cortam, empacotam, ajudam na distribuição”. Samara se emociona ao relatar que a fé em Deus torna possível que ela e o marido Doca ajudem os moradores do entorno.
Para muitas famílias, aquela porção é a garantia da alimentação de alguns dias da semana. Sem emprego fixo, sem auxílio emergencial e vivendo, muitas vezes apenas do Bolsa Família ou de bicos, a distribuição do ossinho passa a ganhar espaço e cada vez mais importância na alimentação daquelas pessoas.
As condições de insegurança alimentar a que estão submetidas as famílias entrevistadas se mostraram alarmantes. Com o agravo da Pandemia, onde muitos tiveram os “bicos” reduzidos ao mínimo, a renda tornou-se uma grande vilã frente aos crescentes preços na cesta básica e no gás. É um triste paradoxo constatar que em um estado campeão na produção de proteína animal, ter o que comer se torna um desafio diário.
É o caso de Marizete Costa dos Santos, de 36 anos, que cria os quatro filhos apenas com a renda do programa bolsa família e com o trabalho sazonal de seu marido.
Eu sou mãe de quatro filhos, três pequenos e um de 20 anos, sobrevivemos com os R$ 358,00 do Bolsa Família e de diárias do trabalho do meu esposo.
Ela frequenta a fila há três anos semanalmente, contanto que tenha com quem deixar os filhos pequenos, e enfatiza a importância da doação para o consumo da proteína. “Um pacote de feijão lá em casa dá para quatro dias, somos em seis, regrando dá… se não fosse os ossinhos não sei o que seria da gente”, desabafa. Seu marido, que trabalha como padeiro, viu sua renda ser reduzida ao mínimo durante a Pandemia, quando seu empregador teve o negócio impactado.
DESEMPREGO
Assim como outras empresas, o açougue também foi impactado com a chegada da pandemia e, mais recentemente, com o aumento exacerbado do valor da carne bovina. No entanto, manteve a opção de não demitir nenhum dos seus 27 funcionários. “Não são apenas 27 funcionários, são 27 famílias que perderiam sua principal renda em meio à pandemia”, reforça Samara.
O açougue faz parte de um pequeno nicho de empreendimentos que não fizeram demissões durante a pandemia. Segundo dados do Sebrae, 25% das micro e pequenas empresas demitiram funcionários desde o início da crise econômica. Entre muitas famílias entrevistadas, a atividade laboral é quase sempre sazonal, sub-emprego sem carteira assinada, o que torna a renda ainda mais incerta. O Brasil soma hoje mais de 14 milhões de pessoas desempregadas. Número crescente nos últimos anos, sendo o maior desde o início da série histórica, iniciada em 2012.
É a situação de Seo Jovanilto Andrade de Almeida, 58 anos, que após trabalhar durante 30 anos em um dos maiores frigoríficos em Cuiabá (MT), foi demitido em 2020. Residindo com mais três adultos e uma criança, ele vai toda semana para a fila em busca de parte da alimentação. Ele ainda não se aposentou por conta da idade. Desempregado, segue fazendo pequenos bicos, catando e vendendo latinhas.
Além da parcela desempregada, muitos idosos e idosas que frequentam a fila não possuem aposentadoria. Cezinando Amaral que, aos 65 anos, não teve sucesso após a primeira tentativa. Trabalhando de charreteiro para garantir a sobrevivência, ele frequenta a fila há mais de anos, sempre que pode busca o ossinho para complementar o que consegue comprar com a ajuda do auxílio emergencial do governo federal.
DISTRIBUIÇÃO
O caminhão chega logo cedo, as peças são separadas em uma bancada, o que fica da desossa segue aos cuidados de dois funcionários que organizam os cortes para a distribuição.
Enquanto arrumam os pacotinhos nas dependências do açougue, a fila vai se formando num movimento crescente do lado de fora. O muro amarelo passa a dar contraste às sobrinhas seguradas para a proteção do sol escaldante à espera das 11 horas, horário da distribuição.
A fila é organizada seguindo algumas prioridades. Mulheres sempre à frente, por exemplo. Segundo Samara, as mulheres geralmente vem com os filhos, pois não tem com quem deixá-los e isso torna a espera mais cansativa. A organização também é feita para que ninguém saia de mãos vazias.
“É muito importante para nós que ninguém saia sem levar nada para casa, pois muitos já contam com essa porção para a alimentação do dia”.
Samara Moreira das Santos
Empresária